quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Jaime Cortesão. Crónicas Desaparecidas, Mutiladas e Falseadas. «E, se quisermos estudar os propósitos do Infante pelas empresas posteriores a 1448, último ano que alcança a “Crónica da Guiné” por Azurara, vemo-nos desde logo nos maiores embaraços»

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Alguns dos feitos que se calaram
«Daí vem, que uma parte imensa da obra do Infante, a que esclarece definitivamente os seus intuitos, ainda hoje tão discutidos, só agora se pode conhecer. Todavia o maior organizador do segredo nacional dos Descobrimentos foi D. João II. Sabemos pela crónica de Resende que para o conservar ele usou de todos os meios, quer obrigando os navegantes a grandes juramentos, quer propalando lendas proibitivas sobre as terras descobertas, quer infligindo a quantos o pretendiam revelar castigos crudelíssimos.
Mais do que isso, ele foi o grande organizador da defesa militar, diplomática e secreta, por meio da espionagem, das navegações e descobrimentos portugueses. É certo que a esse tempo já outras nações mais nos disputavam a posse do comércio das novas terras descobertas. Não seria natural que o ciosíssimo organizador do segredo nacional impedisse também a sua divulgação pela história impressa ou manuscrita, quando os estrangeiros procuravam por todas as formas o seu conhecimento?
Este aspecto político da empresa dos Descobrimentos nas suas relações com a historiografia oficial nunca foi encarado. Não obstante, como não haviam as crónicas, mandadas escrever pelos monarcas, sobre feitos coevos ou de repercussão coeva, de sofrer das enormes limitações e reservas, que lhes impunham os formidáveis interesses que se debatiam?

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Se em história é perigoso medir todos os factos passados pela mentalidade de hoje, não deixa de ser ingénuo supor por demais primitivos certos processos políticos de outrora.
Quem ler as crónicas de Rui de Pina, o cronista oficial, ao serviço de D. João II, quase de todo omisso sobre os Descobrimentos, convencer-se-á de que, para ele, bem ao invés do que acontecia com o seu régio amo, a empresa marítima e colonizadora dos Portugueses era um acidente mínimo na vida nacional. E, se quisermos estudar os propósitos do Infante pelas empresas posteriores a 1448, último ano que alcança a “Crónica da Guiné” por Azurara, vemo-nos desde logo nos maiores embaraços.

Se até àquela data já são muitas as dificuldades, desde aí por diante começa aquilo a que podemos chamar a “época negra” na historiografia oficial dos Descobrimentos portugueses. Entramos desde logo na maior confusão e carência dos dados cronológicos, não sendo mais clara ou certa a história no conhecimento dos descobridores, das terras descobertas e sua respectiva atribuição.

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Crónicas sequestradas ou destruídas
Quando mais tarde, depois do primeiro quartel do século XVI, passado o período de esplendor da epopeia marítima, os nossos cronistas, principalmente Barros e Góis, a querem relatar desde os seus inícios, logo se queixam dessas dificuldades em termos duma rara eloquência. O que espanta apenas é que até hoje ninguém tivesse feito reparo de maior nas palavras dos dois historiadores.
Barros, logo no prólogo das “Décadas”, dirigido a D. João III, declara, depois de se queixar do descuido dos Portugueses em encomendar os seus feitos «à custódia das letras», que se dispõe a escrever o que eles fizeram, porque estão perdidos e até aquela data e sabe “por escrituras particulares serem maiores do que aparentam nas crónicas oficiais”.
Depois, terminado o relato dos Descobrimentos durante a vida do Infante D. Henrique, declara que tudo ou a maior parte tirou de Azurara, mas «não foi pequeno o trabalho que tivemos de ajuntar cousas derramadas e por papéis rotos, e fora da ordem que ele Gomeeanes levou no processo deste descobrimento».

Com efeito é muito de estranhar que não houvesse então em Portugal mais do que folhas mutiladas e soltas da “Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné”». In Jaime Cortesão, A Expansão dos Portugueses no Período Henriquino, Portugália Editora, Lisboa 1965.

Continua
Cortesia de Portugália Editora/JDACT