domingo, 23 de outubro de 2011

Leituras. Parte XXVII. António C. Franco: Memória de Inês de Castro. O Besouro. « O infante tinha nascido ainda no reinado de seu avô, o rei Dinis. Parece que desde pequeno viveu arredado da corte, em pequenas vilas de província, onde se habituou a andar ao colo de camponeses e de serviçais bojudas, que lhe destinavam um futuro promissor e completamente diferente daquele que tinha tido lugar até aí»

Cortesia de allthingsboundbylove

O Besouro
«Branca era em 1327 uma pequena pouco desenvolta para a idade, mas que nada deixava antever como se desenvolveria no futuro. É verdade que lhe já nessa altura apresentava no rosto um desenho sombrio, que lhe cerrava a expressão dura de pequeno insecto. Usava uma touca de que nunca se desfazia, que lhe cobria as próprias orelhas e lhe deixava apenas de fora os olhos. As próprias sobrancelhas ficavam submergidas. Maria de Portugal, poucos meses mais velha do que Branca, tinha no entanto outro desenvolvimento. Era uma espessa, que parecia herdar do pai o pulso e que antes de partir de Portugal, onde só havia de regressar muitos anos depois, teve um sonho, que a tocou como uma visão. Viu de noite, no seu quarto, uma árvore crescer até se tornar gigantesca. Em vez de se ramificar permanecia estática e direita como uma espada. Sobre a terra, que a fez germinar, Maria nota que em vez de frutos caem gotas de sangue.

Em Maio de 1328, na vila de Alfaiates, a leste da cidade da Guarda, muito perto da fronteira, entre besteiros, fidalgos e homens de Concelho, a princesa casou com o rei castelhano, que obteve do papa João XXII as necessárias dispensas. Esse papa que tinha aparecido depois da morte de Clemente V, papa este que se responsabilizou pela destruição da Ordem do Templo, personificou inteiramente o fausto da corte de Avinhão, onde se perseguiram e queimaram franciscanos e outros mendicantes menores. Avinhão foi, de facto, uma corte papal e o papa uma espécie de imperador ou de grande senhor feudal, que usava do seu poder em benefício do seu território. As anatas e os censos eram recolhidos por colectores pontifícios, dando lugar a um trabalho de chancelaria que ocupava uma extensa massa de funcionários agregados.

Cortesia de wikipedia

O papa era geralmente um velho que usava anéis de pedras venezianas nos dedos papudos, incluindo no polegar, e que limpava os grossos beiços luzidios com lenços impecáveis de chambre.

Alfaiates era uma vila fronteiriça, no distrito da Guarda, não longe do Sabugal e que definia, nos finais do século XIII, fronteira com Castela. Só a situação privilegiada que ela ocupava, entre Coimbra e Salamanca, pode explicar a sua escolha para a boda. Alfaiates, perdida entre pedras e moitas, não tinha qualquer importância agrícola nem qualquer riqueza económica, mas guardava uma importância administrativa e política, que já tinha sido bem testada no reinado de D. Dinis. O rei castelhano veio com o seu séquito de fidalgos e de baixelas da bela cidade leonesa da Cidade Rodrigo, onde tinha um palácio com uma ampla varanda toda de pedra branca, que se punha escarlate como púrpura, quando o sol caía no horizonte. Esteve dois dias e depois disse à infanta D. Maria:
  • Senhora, dias de passatempo se querem os dias que vão de gosto, porque os não conta o prazer como os enumera o pesar. Mas enquanto uns dispõem de bodas outros dispõem de armas. Permiti-me pois o despacho e dai-nos depois o consentimento da partida.
Branca chegou a Portugal, timidamente embiocada na sua touca, por um dia frio do ano de 1328. Os portugueses, com Lopes Fernandes à frente, senhor de Ferreira, mordomo-mor do rei e aio do infante de Portugal, foram buscá-la a Fonte Guinaldo, localidade castelhana, onde D. Branca os esperava. Estava prometida ao leito nupcial do infante e o contrato de casamento bem como a boda já tinham sido celebrados. A pressa com que eram feitas tais festas e guardados tais papéis era ainda a pressa com que havia necessidade de celebrar alianças.

Costa Pinheiro
Cortesia de cvc

Desatenta, senão mesmo indiferente à idade e ao estado dos que casavam, a corte interessava-se apenas, muitas vezes, pela voz dos seus juristas e homens de coifa ou barrete, em tecer uma rede de intrigas diplomáticas, que dispunha da vida matrimonial dos infantes desde a nascença. Estes eram em geral alimentados duma forma quase selvagem em paços de província, de pouca importância política ou militar, onde se entregavam a essa liberdade semi-vigiada, que passava a maior parte das vezes por infindáveis correrias por sítios ásperos e repletos de animais silvestres. Bebiam água pelas mãos em concha, cheiravam o repelente cheiro dos próprios sovacos, gritavam para dentro das grutas à espera de ver aparecer um urso, comiam descalços nos pastos, olhavam o mar, a que depois desciam nus. Ganhavam assim uma têmpera rija, que não se diferenciava muito da de certos monteiros populares, que às vezes eram mesmo criados lado a lado com os infantes. A primeira dinastia teve, é sabido, em Portugal, algo de salteadora e de marginal. Falava, a princípio, um português impuro e foi sempre sentida, nesses primórdios que vão pelo menos até D. Afonso II, como uma corte estranha e invasora, uma vanguarda militar que se destinava, antes de mais, a fazer a guerra.

Não admira que quando D. Branca, em Novembro, passou por Lisboa, para se dirigir depois definitivamente a Santarém, não tenha visto o seu esposo, que tinha na altura a idade de oito anos. O infante tinha nascido ainda no reinado de seu avô, o rei Dinis, em pleno conflito entre este e seu pai, e parece que desde pequeno viveu arredado da corte, em pequenas vilas de província, onde se habituou a andar ao colo de camponeses e de serviçais bojudas, que lhe destinavam um futuro promissor e completamente diferente daquele que tinha tido lugar até aí. Eram mulheres grossas, que cortavam carnes e ateavam labaredas do tamanho de carvalhos seculares. Sentiam-se predestinadas por terem entre as mãos o infante D. Pedro, e por lhe darem muitas vezes o peito à boca, lado a lado com os seus próprios filhos, lamentando, com palavras chorosas e arrastadas, a guerra civil que opunha o rei Dinis ao infante D. Afonso, seu filho». In António Cândido Franco, Memória de Inês de Castro, Publicações Europa-América, 1990, edição nº 103310, Depósito Legal nº 33344/90.

Cortesia de PE América/JDACT