quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Leonel Borrela. Cartas de Soror Mariana Alcoforado. Das Lettres Portugaises. «Final da 5ª e última carta; “il faut vous quitter et ne penser plus à vous; je crois mesme que je ne vous écriray plus; suis-je obligée de vous rendre un compte exact de tous mes divers mouvements?”»

Cortesia de 100luz

«Mariana Alcoforado mulher moderna no tempo histórico e na paixão sempre eterna. Nas Cartas, a princípio, é a incondicional e incomensurável paixão de Mariana que nos atordoa; depois, a ambiguidade da sua revolta perante a indiferença do amante e, por último, a sua firmeza:
  • il faut vous quitter et ne penser plus à vous; je crois mesme que je ne vous écriray plus; suis-je obligée de vous rendre un compte exact de tous mes divers mouvements? (final da 5ª e última carta).
Cremos que é imprescindível a leitura atenta de muitos livros para que possamos conhecer, apenas e razoavelmente bem, um único. A este porfiámo-lo durante anos a fio até que nos viesse parar à mão. É raro, mas não é exclusivo, nem haveria necessidade de sê-lo, só para satisfação de bibliófilo, apesar de ser, contudo, o responsável, a partir do século XVII, pelo desencadear de uma invulgar avalanche de edições:
  • referimo-nos à edição princeps das Lettres Portugaises traduites en françois, de 184 pp' in 12º publicada em Paris, lelo livreiro Claude Barbin (c.1628-1698), no ano de 1669.
Esse livrinho integra a nossa colecção bibliográfica alcoforadina, actualmente com cerca de 485 exemplares, entre publicações periódicas e não periódicas, a cujo inventário procedemos para a realização de um estudo académico sobre a “História do Livro e da Leitura através das Lettres Portugaises”. Do inventário resultou o tratamento estatístico das variáveis mais importantes que permitem analisar com maior rigor a colecção nos seus aspectos quantitativo e qualitativo.
A colecção, porém, não é totalmente bibliográfica, nem totalmente alcoforadina pois compreende, também desde o século XVII, além de outras obras afins, mas em menor quantidade, que não referem Mariana Alcoforado ou as Cartas Portuguesas, complemento diversificado, que muito a enriquece, nomeadamente nas áreas artística e iconográfica:
  • fotografia, desenho e gravura, pintura e escultura, medalhística e esfragística, cerâmica, postal, cartaz e publicidade, teatro e cinema, áudio e documentário.

Cortesia de 100luz

Embora o tema da pequena biblioteca alcoforadina seja cativante e mereça que dele se faça uma breve contextualização histórica, serve também de veículo para conhecer uma parte da evolução e dos atributos da imprensa entre as sociedades do Antigo Regime e a Contemporânea. Logo, esse livrinho único, a edição “princeps das Lettres Portugaises traduites en françois”, integrado no seu conjunto seiscentista, que lhe haveria de acarrear maior fama, configura algumas mudanças interessantes na arte da impressão, da composição e na exploração comercial do seu conteúdo.
De todas as edições das Cartas Portuguesas, diacronicamente, poderíamos inferir do seu sucesso económico, dada a quantidade de reedições e versões em prosa, verso, drama e arte, aliado às críticas literária e social, com incursão activa na cultura e na política. Assim, as presumíveis Cartas de Amor da freira portuguesa foram também portadoras da mensagem irreverente de libertação das “Três Marias”, relativamente ao papel da mulher portuguesa, e não só, no regime de Salazar e Caetano. Antes delas, já o general Humberto Delgado (1906-1965), em 1964, tinha publicado no seu exílio brasileiro um importante ensaio, constantemente ignorado pela maior parte dos estudiosos, sobre Mariana Alcoforado e a condição sofrível em que vivia a mulher em Portugal.

NOTA: Humberto Delgado, “O infeliz amor de soror Mariana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964”. No ano seguinte, numa das suas visitas clandestinas a Portugal e a pretexto de um encontro forjado na raia, próximo de Olivença, com elementos da oposição ao regime salazarista, Delgado é assassinado pela polícia política, juntamente com a sua secretária Arajaryr Campos. No monumento construído em sua memória no local para onde atiraram os dois corpos, no Camiño de los Malos Pasos, próximo de Villanueva del Fresno, não existia sequer uma pequena placa que homenageasse a mulher que o acompanhava, cuja emancipação ele tanto defendia, razão porque vemos nalguns livros, como o da infeliz Mariana, monumentos mais úteis à sociedade, embora menos visíveis do que alguns monumentos. Arajaryr Campos foi, por fim, homenageada devidamente, no início de 2006.

Apreciamos, evidentemente, a edição ”princeps das Cartas Portuguesas” como raridade bibliográfica que tanto apraz aos bibliófilos, mas vemo-la, fundamentalmente, como fonte histórica e testemunho pungente que as cartas originais, desaparecidas, não podem dar; admiramos nas gravuras concebidas por Eisen e abertas a buril por Massard (1770) a tentativa de substituir a beleza das palavras; apercebemo-nos da permanente evolução dos elementos que estruturam o livro e, também, do apego deste à tradição, pela frequente utilização de capitulares, as grandes letras, quase sempre ornamentadas e encaixilhadas que no início do prefácio e do capítulo certificam bem o gosto e o hábito do passado manuscrito e iluminado dos códices.
Planta do centro histórico de Beja

Vista parcial de Beja no final do séc. XIX. Aguarela de Leonel Borrela
Cortesia de 100luz

Abrimo-nos, assim, ao espaço visível do livro, de memórias sem tempo, normalmente, os livros, têm vida, são um local de debate, galeria de arte e museu, uma boca de cena onde pulula o teatro da vida, onde pulsam os bastidores; são um diário devassado, recôndito, alvo de curiosíssimos olhares nada discretos; são um valioso testemunho da história; são, afinal, as polémicas “Lettres Portugaises traduites en françois”, editadas pelo livreiro parisiense Claude Barbin, no dia 4 de Janeiro de 1669, um bom pretexto para sustentarmos a sua presumível autenticidade portuguesa, na qual acreditamos, e articularmos a historia do seu percurso temporal no espaço e na memória.
Daremos a nossa visão contemporânea da cidade de Beja, ainda envolta de pergaminhos históricos assinaláveis, seguida do retorno ao seu ambiente militar seiscentista europeu, coevo das “Lettres Portugaises”. Seguir-se-ão, sucintamente, Mariana, Chamilly e Guilleragues, e a polémica que envolve a autoria das cartas, portuguesas, para uns, e, para outros, francesas. Não vamos afirmar que leitura e vida corriam paralelas, como no caso setecentista do comerciante Jean Ranson que estruturou a sua, após tomar como modelo a seguir as leituras de Rousseau, mas acreditamos que as Cartas Portuguesas, pelo elevado número de edições, provam o quanto eram e são procuradas pelos leitores, provavelmente como uma necessidade vital de esconjurar uma existência que ninguém deseja para si:
  • a clausura,
  • o desamor,
  • o esquecimento.
In Leonel Borrela, Cartas de Soror Mariana Alcoforado, Edição 100Luz, 2007, ISBN 978-972-99886-7-7.

Cortesia de 100 Luz/JDACT