domingo, 1 de janeiro de 2012

Fina d’Armada. Leituras. Parte XLII. O Segredo da Rainha Velha. «Quem és tu? - perguntou ‘Bastião’, pois não se lembrava de ter visto aquela menina antes, vestida à fidalga, como se fosse mulher grande. - Beatriz - disse a menina, esgueirando-se para detrás de uma oliveira, na tentativa de se esconder e não a descobrirem, enquanto não explorasse mundo»

Morte de D. João II
jdact

«O terreiro dos Paços de Alcáçova tinha sido preparado para a cerimónia. Carpinteiros e costureiros, servidores diversos não tinham tido parança na preparação do espaço onde o Infante seria alevantado como novo Rei.
D. Duarte desceu as escadas. Todos ficaram maravilhados quando o viram sair do Paço para o terreiro arrastando seu manto. Como era alto e forte, era uma figura imponente. Vinha acompanhado de gente nobre, vestida de brocados e opas de veludo. Todos demonstravam alegria. O mestre-sala indicou a D. Duarte a cadeira real, posta sobre um cadafalso alto, que se estendia encostado ao longo do Paço. Estava cercado dos Infantes, seus irmãos, e de outros senhores e oficiais, postos pelo mestre-sala na posição que a cada um pertencia pela importância do título ou do posto. D. Pedro de Meneses, primeiro Capitão de Ceuta, por ser alferes-mor, tomou a bandeira real e a teve à mão direita de Elrei, enrolada na haste, que dali a pouco desfraldaria ao vento. Já se tinha preparado para o pregão que aclamaria o novo Rei, pois D. João I, seu pai, jazia na Sé, desde ontem. Mas as leis de Deus e dos homens determinavam que um reino e um povo não podiam estar sem rei, dois sentimentos se misturavam numa só frase: «morreu o Rei, viva o Rei», «Rei morto, Rei posto». Tristeza e alegria, esperança num novo tempo, temor pelo futuro, no espaço de um dia.

Se à direita se perfilava o conde de Viana com a bandeira real enrolada, à esquerda do cadeirão real via-se uma cadeira baixa. Sobre ela, repousava uma almofada de seda vermelha e ouro, contendo um missal de rica encadernação. Seria sobre ele que o novo soberano prestaria seu juramento.
Quando todos ocuparam os seus devidos lugares, Dom Álvaro de Abreu, bispo de Évora, proferiu uma alocução pública, que se chamava arenga nesses tempos. Terminada a arenga, o bispo pôs-se de joelhos e dispôs-se a beijar a mão ao homem que por suas palavras consagrara como Rei. Mas D. Duarte não lha quis dar ainda não tinha assimilado que era um homem importante do mundo, a quem um reino inteiro tinha de obedecer e os estrangeiros respeitar. Com quarenta e dois anos feitos, sentia-se um menino sem saber como devia actuar.

Tratado de Toledo_Alcácofas
Cortesia de wikipedia

Apenas se lembrava da pequenez humana. Por isso, em vez de dar a beijar ao bispo, fez-lhe um pedido:
  • - Bispo, se vos bem parecesse, eu queria que no fim deste auto de aclamação se queimassem aqui ante mim, uns panos, umas poucas de estopas, como lembrança e comparação que esta glória e pompa do mundo duram pouco e passam mui brevemente.
Mas ao bispo não pareceu bem. E, ao se aperceber da atrapalhação daquele Rei menino de 42 anos, que ainda não tinha acordado para o oficio de Rei, como dissera o seu confessor, segredou-lhe:
  • - Parece-me, Senhor, que a memória e conhecimento que disso tendes dispensa por agora outra cerimónia.
O soberano calou-se, como se concordasse, e nada mais disse. Logo a sua primeira vontade, uma expressão da sua intelectualidade filosófica de que tudo é temporário na Terra, foi contrariada pela vontade de um bispo. Apercebeu-se de que entenderiam se ele fosse soldado, matador de infiéis, cruel ou sanguinário, mas nunca entenderiam um Rei intelectual, escritor e poeta.
Começava mal D. Duarte. Primeiro o astrólogo a aconselhá-lo a mudar o horário da cerimónia. Agora o bispo a mandar nele em vez de ele mandar no bispo. E ainda desconhecia que, nesse momento, em Leiria, o irmão D. Pedro, como político maduro e vocacionado para o mando, lhe escrevia uma longa carta com conselhos de administração. D. Duarte ansiava apenas que tudo terminasse depressa. Queria continuar a chorar o pai e adiar a ideia de que era o Rei e todos lhe deviam obedecer agora, até o bispo, pois tinha direito de vida e de morte sobre todos, como se fosse Deus, sem nunca ser julgado. Mas isso era coisa que não queria puxar ali. Agora era hora de obedecer aos ritos.

Felizmente, o conde D. Pedro de Meneses, depois de os reis de armas darem pregões e gritas de silêncio, despregou a bandeira para esvoaçar ao vento, que era apenas uma ligeira brisa. Em voz alta, que o povo de fora das muralhas do Paço ouvia, disposto pelas colinas do castelo, pisando a erva rasteira e abrigando-se à sombra das oliveiras, por três vezes fez o pregão costumado.

Interior de uma nau
Cortesia de wikipedia

«”Real, Real, Real, por Elrei D. Duarte Rei de Portugal”». Após o conde, bradaram os Infantes: «”Real, Real, Real»... O mesmo bradaram os Senhores, os membros das Ordens Militares, alinhados, de cruz identificativa da respectiva Ordem ao peito, e toda a outra gente que estava presente no terreiro. Como um eco, os de fora dos muros do Paço, mas dentro do castelo, repetiam alto o que chegava aos seus ouvidos. Os da cozinha e serviços também ouviram, distantes. Uns choraram outros riam com esperança de tempos melhores.
‘Bastião’ estava encoberto, afastado, ninguém reparava nele, mas também gritou «”Real, Real, Real”».
Seguiu-se o beija-mão, agora D. Duarte não podia escusar-se. Aquele beija-mão era a maneira oficial de o reconhecerem como legítimo e verdadeiro Rei, a aclamação regia-se pelo velho e sagrado rito. Quando já não havia mais bocas para o beija-mão, ao Rei foi permitido retirar-se para seus aposentos.
Graças a Deus e a Santa Maria de Agosto que tudo tinha terminado! Nem pensou que agora vinha o pior a direcção do leme, e muito pior seria se o Mestre Guedelha tivesse razão.

O conde alferes-mor e todos os senhores montaram a cavalo, trazidos pelos servidores, vestidos também de gala, e saíram pelas portas do Paço. Procuraram avançar por meio da multidão que continuava à espera sem saber de quê, apenas o de poder dizer que estivera lá. Alguns conseguiram mesmo ver alguma coisa que teriam para contar a conhecidos e aos netos, passos daquela cerimónia que não era vista há meio século. E muito povo se juntou atrás dos cavalos e foi acompanhando a bandeira despregada por toda a cidade. Nas praças maiores, o cortejo parava e, com a bandeira içada, lançava ao ar em alta voz os pregões, os vivas a Elrei D. Duarte, fazendo esvoaçar a passarada que devia pensar que as gentes daquela terra haviam enlouquecido.

‘Bastião’ não se atrevera a andar pela cidade a dar vivas, as suas pernas não lhe davam asas para esses voos. Ficou fora do Paço, no meio da gente amontoada. Uns queriam ver o Rei morto na Sé, esperavam vez de subir as escadas e ver seu rosto barbeado, pois tinham colocado o corpo num estrado alto, no meio da nave. Outros tinham vindo apenas assistir e ouvir alguma coisa. Era uma festa, um acontecimento. E muitos procuravam ganhar a vida. Aproveitaram aquele momento para montar banca e levantar a tenda, tinha-lhes sido permitido. Eram frades a escrever cartas ditadas para gente que estava na ilha da Madeira, eram ciganas a ler a sina, eram camponesas a vender couves e alfaces, eram ferreiros disponíveis para consertar ferraduras e rodas de carroças, eram taberneiros com pipas de vinho diferente que diziam ser do bom, eram mouros e judeus fazendo negócios e mostrando tecidos importados, eram raparigas procurando namorado, eram mulheres da vida disfarçadas lançando olhos marotos a presumíveis clientes, para terem pão.

No meio da confusão geral, e do cheiro a urina e excrementos de gente e de bichos, ‘Bastião’ reparou numa menina, vestida como princesa, aparentando ter fugido à sua ama, num momento de distracção. Teria aí uns quatro anos, cabelos aos cachos, com olhos que expressavam uma curiosidade do tamanho do mar, tudo olhando, tudo colhendo como informação do mundo.

- Quem és tu? - perguntou ‘Bastião’, pois não se lembrava de ter visto aquela menina antes, vestida à fidalga, como se fosse mulher grande.
- Beatriz - disse a menina, esgueirando-se para detrás de uma oliveira, na tentativa de se esconder e não a descobrirem, enquanto não explorasse mundo.

‘Bastião’ correu atrás dela com a sua perna coxa. Podia ser apanhada e feita refém. Tinha ouvido falar que isso acontecia entre mouros e cristãos. Aparentava ser uma criança importante. Se soubessem da fuga, a ama acabaria por ser despedida. Nisto, aproximou-se uma cigana. ‘Bastião’ ficou com receio que ela raptasse a menina. Ele não teria pernas para ir atrás dela, por isso gritou:

- Teu pai está ali, Beattiz.

Ao falar no pai, ‘Bastião’ pensou afugentar a cigana, mas esta não se moveu. Pelo contrário, aproximou-se ainda mais e pegou na mão da menina. ‘Bastião’ conseguiu chegar a tempo e pegou na outra mão da fidalguinha. Mas, de repente, estacou. A expressão da cigana exprimia espanto, ‘Bastião’ não sabia se era pavor ou admiração. A cigana não retirava os olhos das linhas da mão, olhou uma e depois quis olhar a outra, afastando a mão do rapaz. E proferiu:
  • - Não pode ser!
‘Bastião’, o curioso ‘Bastião’, que lia sempre a sina quando podia, a troco de qualquer coisa que tirava da cozinha sem ninguém ver, ficou quieto e mudo. A menina também olhava a cigana com a curiosidade do tamanho do mar.
  • - Serás uma mulher poderosa do mundo.
  • - Rainha? - perguntou a menina, com olhos que irradiavam inteligência.
  • - Não, mas será como se fosses, pois o teu futuro está enlaçado na vida de reis. Terás mais poder que rainha, decidirás até quem se sentará em tronos.
  • Serás senhora de um império, de mistérios e segredos, e mudarás a ordem do mundo. Mas...
A cigana calou-se. Os seus olhos arregalaram-se, os de ‘Bastião’ também.
  • - Mas ficarás aprisionada numa maldição... quer dizer, recairá sobre ti a maior maldição do mundo».
 In Fina d’Armada, O Segredo da Rainha Velha, Ésquilo, 2008, ISBN 978-989-8092-46-5.

Cortesia de Ésquilo/JDACT