terça-feira, 24 de setembro de 2013

A Insurreição Miguelista nas Resistências a Costa Cabral (1842-1847). José Brissos. «Os ‘urneiros’ manifestavam um claro distanciamento face à ideia de uma Restauração miguelista pela via revolucionária ou simplesmente insurreccional e evidenciam a confiança de que o “Systema da Urna”»

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A Montagem de uma Conspiração. Debates de Comando e Direcção
«(…) Todavia, a ideia de participar em eleições visando alcançar uma sólida presença parlamentar não era pacífica entre os realistas e, pelas suas implicações, supunha um acto compromisso com o regime. Na realidade esta posição, os urneiros, como então eram conhecidos, caucionava um debate permanente entre os realistas sobre o tipo de resistência a empreender contra o Estado liberal. A inexistência de uma estrutura partidária ou sequer de intenção conspiratória, o exemplo recente do isolamento do Remexido e, sobretudo, a contaminação de interesses que o regime produzia haviam de diluir o integrismo doutrinário de alguns sectores do miguelismo.
A base fundamental da posição urneira estava definida desde os finais de 1839 e de 1840. O seu estudo não é, como já foi referido, o objecto deste trabalho, mas a sua referência geral é indispensável para a compreensão da dinâmica interna do campo realista. Os urneiros manifestavam um claro distanciamento face à ideia de uma Restauração miguelista pela via revolucionária ou simplesmente insurreccional e evidenciam a confiança de que o Systema da Urna, mediante uma maioria parlamentar traria, indirectamente, consigo as mesmas concequências [sic] da revolução, sem os inconvenientes e obstaculos desta [...].
Esta proposta de intervenção política supõe uma aliança com os setembristas, bem como uma conduta moderada inscrita na recusa em aceitar cargos de responsabilidade ou a presença na corte liberal. Além disso, procurava-se, discretamente, contribuir para o desgaste das notabilidades liberais, no intuito de preencher o espaço resultante da quebra da sua audiência. Os urneiros organizavam-se em torno do jornal Portugal Velho e do seu mentor principal Albino Abranches Freire Figueiredo. Esta orientação contava com os nomes menos conhecidos como Ayres Sá Nogueira, Francisco Jerónimo Silva, Sancho Manuel Vilhena Saldanha e outros.
Note-se que o envolvimento eleitoral tenderá a atrair cada vez mais as notabilidades miguelistas, não só em Lisboa, como também nas províncias do Norte. Assim, a representação realista nas cortes liberais acabou por verificar-se, pela primeira vez, na sequência das eleições de Julho de 1842. Caetano Maria Ferreira Silva Beirão (eleito pela Estremadura na lista da coalisão anticabralista) e Cipriano Sousa Canavarro (escolhido por Trás-os-Montes entre os candidatos propostos pelos cabralistas) são os dois deputados legitimistas que inauguram esta orientação legalista de integração no sistema. O envolvimento parlamentar dos urneiros dava-se na mesma altura em que o outro segmento do campo miguelista, defensor de uma postura subversiva e conspiratória, se começava a organizar e a diligenciar a anuência oficial de Miguel, exilado em Roma. A demarcação e desconfiança entre os dois grupos será crescente, não só na prática política, como no próprio discurso ideológico. A polémica entre as duas facções tinha um impacto público e pessoal, inviabilizando um esforço unitário de Restauração.
Nestas condições a corrente de opinião defensora de uma estratégia insurreccional de resistência ao Estado liberal vai intentar a definição de um plano de organização, destinado a aproveitar, sempre que possível, as circunstâncias políticas do país a favor da causa miguelista. É, deve dizer-se, um projecto de acção definido a partir do exterior, embora possua, como veremos, uma persistente ramificação nalgumas áreas regionais. Este grupo que nós podemos designar de ortodoxia subversiva definiu-se a partir de António Ribeiro Saraiva, residente em Londres, sendo oficializado, digamos assim, por Miguel em Junho de 1842. Na realidade assistimos nesta altura a uma renovação da confiança do monarca exilado no seu antigo agente diplomático, a qual já lhe havia sido concedida em 1835. Mais do que isso, Ribeiro Saraiva passava a dispôr de uma legitimidade própria para congregar meios e influências, tendo em vista o movimento da Restauração:

Outro sim sou servido autorizar-vos para que em Meu Real Nome, e pelos meios que julgardes mais acertados, assegureis a todos os Portugueses, sem distinção, que quizerem aderir ao verdadeiro sistema da restauração da legítima e antiga Constituição do Estado, e do exercício dos Meus direitos, que Eu estou firmemente determinado a observar, e fazer observar a dita Constituição, tal qual as leis fundamentais da Monarchia [...].

Este discurso presente na Carta Régia de 2 de Junho de 1842 tem grande significado não só pela autoridade que confere ao destinatário, mas também pelo seu próprio enunciado verbal. Com efeito, o documento subscrevia, em termos globais, a linguagem oficial que havia sido proposta ao monarca Miguel por Ribeiro Saraivar. Na verdade, o que está em causa é a projecção pública do discurso miguelista no país liberal, daí as insistências numa regeneração constitucional, embora definida na linha da tradição política portuguesa. Além disso, avulta ainda a ideia de promover um distanciamento táctico em relação à experiência governativa de Miguel, lançando as bases para uma nova imagem política, capaz de alargar a audiência da proposta legitimista a áreas da sociedade portuguesa desiludidas com a hegemonia do cartismo cabralista. Os destinatários são os setembristas, cuja cooperação é tornada como indispensável para um movimento de Restauração. Este problema ganhará uma acuidade crescente à medida que se vão definindo os esforços de resistência liberal ao cabralismo». In José Brissos, A Insurreição Miguelista nas Resistências a Costa Cabral (1842-1847), Faculdades de Letras de Lisboa, Edições Colibri, 1997, ISBN 972-8288-80-8.

Cortesia de Colibri/JDACT