domingo, 15 de setembro de 2013

Fragmentos de uma Composição Medieval. Imprensa Universitária. José Mattoso. «De toda a maneira, e do ponto de vista civilizacional, a própria diferença entre os modelos oriental e africano e o hispânico dificultou a assimilação não só dos moçárabes, mas também dos “muwalladi”»

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Portugal. História e Identidade
Os Moçárabes
«(…) Comecemos, pois, por distinguir claramente moçárabes e árabes. Aqueles conhecem-se pela língua, pois continuam a falar entre si um dialecto próximo do latim vulgar, com as suas peculiaridades estudadas pelos filólogos, pela religião, porque continuam a praticar o cristianismo, e pela cultura, pois os seus clérigos, pelo menos, continuam a preserver muito da superioridade da cultura latina do fim do Império. À primeira vista não devia restar muito dos moçárabes no momento da Reconquista, à data da ocupação de Lisboa (1147) ou à data da conquista do Algarve (1249). É o que se deve concluir das duras condições em que viviam, sob o domínio islâmico, pois foram onerados por pesados impostos, perseguidos, sobretudo nas cidades, por vagas sucessivas de chefes políticos intolerantes, muito particularmente a partir do império almorávida, relegados em condições de inferioridade para os meios rurais, como agricultores dependentes dos vencedores. Não se generalize, portanto, o habitual princípio de tolerância religiosa muçulmana, que se verificou durante séculos, mas deixou de ser praticada a partir do fim do seculo XI.
Acrescem a estas circunstâncias desfavoráveis as violências e opressões dos próprios cristãos que, no momento em que avançaram para sul, submetiam frequentemente os moçárabes ao cativeiro ou à servidão, confundindo-os com os muçulmanos. Estes factos históricos, parecem explicar suficientemente o facto de os vestígios deixados pelos moçárabes na toponímia, na onomástica, na fonética e nas particularidades lexicais se terem absorvido com rapidez, ao ponto de deixarem bem poucos vestígios no português actual. Se assim fosse, o contributo dos moçárabes para a edificação do espírito nacional não podia ter sido grande. A colonização cultural nortenha tudo teria absorvido rapidamente. Tirando alguns resíduos ocasionais, até a memória do passado moçárabe se teria perdido sem remissão. O país, a nação, teria englobado gente do Sul, evidentemente, mas cultural e institucionalmente seria afinal uma realidade nortenha, cuja pujança lhe teria permitido absorver o resto do território nacional. - Vejamos tudo isto mais de perto.
Antes de mais, convém reunir os testemunhos da debilidade da etnia e da cultura moçárabe. Depois, veremos que a sua resistência não é tão pequena como isso. Finalmente tentaremos descobrir como puderam subsistir elementos típicos da sua individualidade através do processo de aculturação que se deu a partir da segunda metade do século XI e durou pelo menos até ao princípio do século XIV.
A debilidade étnica e cultural dos moçárabes é inegável. Constantemente afectados pela conversão ao islamismo, pela emigração para o norte cristão e pelas perseguições almorávidas e almóadas, só é de admirar como conseguiram, mesmo assim, subsistir até à Reconquista. De facto, existem numerosos testemunhos das conversões de cristãos ao islamismo. Os que o faziam chamavam-se muwalladi. O seu número era suficientemente grande para darem origem a povoados que guardaram nos respectivos nomes o vestígio da sua conversão. É o que acontece com o topónimo Moldes mollites, muwalladi. Sabe-se também que um número considerável de chefes de taifas no século XI e no século XII eram muwalladi. Embora esta fosse, por assim dizer, a forma mais benigna de absorção pela civilização islâmica, pois a conversão religiosa não destruía completamente as tradições culturais autóctones, não há dúvida que os modelos sociais e culturais adoptados pelos muwalladi eram alheios. E embora não se possa negar que a civilização andaluza constitua uma síntese a partir de tradições da Bética romanizada e do mundo árabe (como salienta Sánchez Albornoz), também não se pode esquecer que o modelo social e cultural oriental e africano é fundamentalmente diferente do do hispânico, como Pierre Guichard provou sem sombra de dúvida. Assim, tanto o domínio almorávida como o almóada contribuíam para restabelecer a dualidade atenuada durante os dois períodos de reinos taifas que os entremearam e para comprometer as sínteses originadas pelos muwalladi.
De toda a maneira, e do ponto de vista civilizacional, a própria diferença entre os modelos oriental e africano e o hispânico dificultou a assimilação não só dos moçárabes, mas também dos muwalladi. A fragmentação das taifas e a fitna (revolta) dos muwalladi mostraram justamente a capacidade de resistência da etnia hispânica. Muitos dos textos históricos árabes demonstram os profundos antagonismos existentes entre eles e os árabes e berberes. Não é, portanto, incorrecto associar moçárabes e muwalladi, apesar das diferenças religiosas. Assim, por exemplo, os fenómenos linguísticos de que aqui se fala pertencem certamente a ambos. Provavelmente nunca chegaremos a saber se os camponeses dos arredores das cidades, que eram certamente ibéricos, se chegaram a converter ao islamismo. Para os efeitos que aqui nos interessam, porém, esta questão não é muito importante. Por isso, quando, no resto deste trabalho, falarmos de moçárabes, não queremos, com isso, excluir os muwalladi».

In José Mattoso, Fragmentos de uma Composição Medieval, Imprensa Universitária, Editorial Estampa, Lisboa, 1987.

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