sábado, 28 de setembro de 2013

Inquisição de Évora. Dos Primórdios a 1668. António Borges Coelho. «No Secreto havia duas mesas com os artefactos necessários tinteiros, tesouras, canivetes, areia, penas, tinta, linhas, agulhas, obrea, e papel em abundância. E ainda os papéis de segredo de cada inquisidor; os livros de denúncias; livros de processos…»

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A instituição. Casas de Despacho e de Secreto
«(…) Em 1636 o arquitecto Mateus Couto desenhou a planta do tribunal e palácio do Santo Ofício (maldito). No seu todo comportava dois corpos, unidos mas independentes: a leste, a ala dos cárceres com os seus corredores e pátios e ainda Casas de Despacho e morada do alcaide; a oeste, o outro corpo, o paço-residência dos inquisidores. No primeiro corpo, encostado ao templo romano / açougue, desdobravam-se no rés-do-chão, dois núcleos de cárceres num total de trinta e cinco com frestas abertas para dois pátios interiores. Ainda nesse rés-do-chão, se situavam as casas do Fisco, a cozinha e a copa. Subindo ao primeiro andar, à mão esquerda da entrada, como conjunto autónomo, sucediam-se as duas Casas do Despacho (a pública e a secreta), o oratório e a Casa do Secreto. Ao lado, quase num quadrado perfeito sobre as celas do piso térreo, erguiam-se trinta e quatro cárceres. Num dos ângulos, as casas do alcaide.
Quanto ao segundo corpo ou paço dos inquisidores, ficavam, no piso térreo, os aposentos do terceiro inquisidor ou inquisidor mais novo com suas lógeas e quintais. E ainda as casas, quintal e dependências do despenseiro. No primeiro andar, desdobravam-se os aposentos do primeiro e segundo inquisidores. Casas de Despacho havia duas, portanto: uma interior, secreta, onde comummente se ouviam / interrogavam os presos; e outra exterior, pública, onde se despachavam / julgavam presos de qualidade e de culpa considerada mais leve. A Casa do Despacho será em lugar tão resguardado, que fora dela se não possa ouvir cousa alguma do que aí se trata. As paredes serão forradas com panos de arrás no Inverno, guadramecins no Verão. De frente para os presos olhava uma imagem de Cristo de vulto ornada com a decência que convém, imagem que se guarda no museu da cidade.

Sobre o estrado de quatro dedos de altura ficava a mesa de três gavetas e chaves diferentes onde cada um dos inquisidores guardava os seus papéis, menos os cadernos que se recolheriam sempre na Casa do Secreto. A mesa era coberta com um pano de damasco carmesim e por cima coiro negro. De cada banda ordenavam-se cadeiras de espaldas. Dizia-se vir, chamar à Mesa com letra grande e não chamar aos inquisidores. O objecto e a sua palavra ocultavam / coisificavam o poder exercido pelos homens. Haveria ainda na casa do Despacho cadeiras rasas para presos e testemunhas de qualidade; e banco para preso com pouca qualidade. os instrumentos e materiais do ofício comportavam um missal com os santos Evangelhos para dar juramento; uma tábua com a oração do Espírito Santo a quem se pedia inspirasse as confissões dos presos (o cunhado de Gabriel da costa, Álvaro Gomes Bravo, pediu audiência alumiado do Espírito Santo para confessar suas culpas nesta Mesa, e que não o fizera até agora por seu pecado o enganar; regimentos do Santo Ofício (maldito) e do Fisco; o colectório das bulas apostólicas e privilégios da Inquisição (maldita); tinteiros de prata; uma campainha.
Na Casa da Tortura, além dos Santos Evangelhos, havia um conjunto de aparelhos: primeiro a polé com o balance, a roldana, as cordas e outros instrumentos; mais tarde o potro, banca de madeira com os seus cabos e arrochos onde se arrochavam cada braço e cada perna do preso que se apresentava de coleira. Não faltava o púcaro e o pano para a tortura da água. E navalha para rapar a planta dos pés. Meirinho e alcaide dos cárceres, além das armas, usavam nos castigos o açoute e as mordaças. Saindo da Casa do Despacho interior entrávamos na Casa do Secreto. Aí estavam todos os processos, repertórios, livros e papéis de segredo. E as janelas que tiver pela parte de fora terão grades de ferro fortes, e esteiras, de maneira que se não possa entrar por elas. E terá uma só porta para a Casa do Despacho, bem segura e com fechadura de três chaves de guardas diferentes: uma chave terá o promotor e as outras duas os dois notários mais antigos. Mas a Porta do Secreto só se abrirá na presença de um inquisidor.
A planta de Mateus do Couto seguia, para a Inquisição (maldita) de Évora, as indicações do Regimento de 1640. Assim a sua Casa do Secreto abria por uma só porta para a Casa do Despacho interior e só para ela. Esta Casa do Despacho comunicava com o Oratório e a Casa do Despacho pública mediante uma saleta interior onde ficava o porteiro de dentro. Aliás estas Casas, do Despacho, do Secreto e Oratório, constituíam um conjunto independente, embora comunicante, através de um corredor, com o mundo de suor, urina e fezes das celas interiores. No Secreto havia duas mesas com os artefactos necessários tinteiros, tesouras, canivetes, areia, penas, tinta, linhas, agulhas, obrea, e papel em abundância. E ainda os papéis de segredo de cada inquisidor; os livros de denúncias; livros de processos; livros dos autos-da-fé realizados em Évora e nas outras Inquisições; o livro de todas as terras que pertenciam à jurisdição de Évora com os nomes dos comissários, escrivães e familiares que nelas se criaram; os livros de receita e despesa, etc., etc.
Ficavam ainda aí arcas encoiradas para levar ao auto-da-fé os processos despachados ou os livros para queimar; e uma arca com três chaves em que se recolhia todo o dinheiro que por qualquer via tocar ao Santo Ofício.

NOTA: No Regimento de 1613, promulgado pelo bispo inquisidor-geral Pedro Castilho já a câmara do secreto avultava como fortaleza dos segredos: Regimento do Sancto Officio da Inquisiçam dos Reynos de Portugal. O exemplar da Biblioteca Nacional, Res. 238 A pertenceu ao ex-inquisidor de Évora e membro do Conselho Geral doutor Gaspar Pereira que o ofereceu ao doutor Bernardo de Ataíde quando este tomou posse, a 20 de Agosto de 1623, do lugar de deputado da Inquisição (maldita) de Lisboa».

In António Borges Coelho, Inquisição de Évora, dos Primórdios a 1668, volume 1, Editorial Caminho, colecção Universitária, Instituto Português do Livro e da Leitura, 1987.

Cortesia Caminho/JDACT