domingo, 15 de setembro de 2013

O Regente Pedro. Príncipe Europeu. Mário José Domingues. «… mercê da acção inteligente e subtil de homens como ‘João das Regras’, ‘Lourenço Vicente’, arcebispo de Braga, ‘João Afonso Azambuja’ e outros, ao defender a independência do reino simultaneamente defendesse uma nova ordem social, instaurada pela “Revolução de 1383”»

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A Ínclita Geração
«(…) Mas enquanto o rei João I era vivo, ninguém podia prever até que ponto chegavam as pretensões daquele filho bastardo, que, casando com a filha de Nuno Álvares Pereira, fundara a mais abastada e poderosa casa fidalga do reino, depois da casa Real. Já alimentaria desmedidas ambições, embora tivesse o cuidado de as dissimular em presença do monarca seu pai. Este teve, no entanto, algumas culpas nos recalques desse filho natural, que mais tarde haviam de explodir com tanta violência, que deixariam manchadas para sempre as páginas da história lusitana num dos seus períodos mais brilhantes. Foi precisamente no início da expansão portuguesa nas Colónias. Castela, após uma série ininterrupta de desaires sofridos, por obra da espada invencível de Nun'Álvares, persuadira-se finalmente de que a conquista do trono português não passava de sonho insensato. Assinaram-se, em 1411, entre os dois países, pazes eternas, para as quais muito contribuíra a feliz circunstância de ser a rainha castelhana irmã de D. Filipa, rainha de Portugal. Um novo ciclo histórico abrira-se neste reino, mercê de uma profunda Revolução de espírito acentuadamente burguês.
Terminadas as lutas contra o vizinho peninsular, a fidalguia, a classe guerreira, quedara-se numa ociosidade que, além de avessa à sua índole, podia transformar-se em agente de distúrbios no reino, transtornando um certo equilíbrio que a Revolução trouxera às três classes sociais, nobreza, clero e povo, tacitamente submissas à autoridade de um monarca, que alcançara as simpatias gerais e um prestígio suficientemente forte para se fazer respeitar nas suas decisões, que procurava tornar tão equitativas quanto possível. Quem mais se temia de que este equilíbrio se alterasse era a classe burguesa, em franca ascensão política, embora seus interesses ainda se confundissem em parte com os do povo trabalhador de que era oriunda. Ela já conseguira, mercê da acção inteligente e subtil de homens como João das Regras, Lourenço Vicente, arcebispo de Braga, João Afonso Azambuja e outros, que a nobreza, ao defender a independência do reino contra as arremetidas de João de Castela, simultaneamente defendesse uma nova ordem social, instaurada pela Revolução de 1383, que tivera seu começo visível na morte do conde Andeiro.
Extintos os últimos ecos das batalhas, consolidado o trono português, iniciada uma nova dinastia, à qual João I imprimia o cunho da sua argúcia e da sua prudência, e sua mulher D. Filipa o selo da mais austera moralidade, verdadeira obra de regeneração de costumes na corte e no reino, a burguesia principiava a recear que o período de quietação que se seguira, viesse a ser perturbado por uma nova geração de nobres, ansiosa por engrandecer-se, à semelhança de seus pais e avós. Classe guerreira por excelência, a nobreza não conhecia, ou não admitia outra honrosa tarefa para engrandecimento pessoal senão a da guerra. A carreira eclesiástica, em que alguns raros ingressavam, não bastava para saciar a sua sede de riqueza e de honrarias. O Comércio era considerado vil para homens que manejavam uma espada e se orgulhavam de ser cavaleiros; a Lavoura começava a ser encarada como ocupação própria só de servos, sob as vistas distantes dos senhores, a quem apenas interessava a renda, por vezes cobrada com certa violência. Os torneios eram bonitos, mas não passavam de lutas simuladas, exercícios vistosos, um desporto, sem mais finalidade do que o de agradar a donas e donzelas. Só na guerra a classe nobre julgava encontrar missão à altura da sua importância social. Como que a denunciar a inquietação da juventude fidalga, as próprias aspirações dos filhos mais velhos de João I, em situação semelhante à dos filhos de tantos senhores em todo o reino, tornavam-se bem eloquentes aos olhos observadores dos conselheiros deste monarca, norteados pelo espírito burguês da Revolução que gerara a dinastia de Avis. Não havia a menor dúvida: era preciso achar-se um derivativo, uma ocupação para aquela mocidade estuante de vida, ansiosa por esbanjar as suas energias à vontade.
O antigo mestre de Avis, agora monarca, bem sentado no seu trono, ficara farto de guerra e sentia-se com direito de passar o resto dos seus dias repousadamente. Como em regra acontece aos homens de idade madura, já não entendia muito bem a geração que lhe sucedia. Acomodara-se à ideia de que os filhos mais velhos, ao rondarem as suas vinte primaveras, deviam sentir-se muito felizes por viverem num reino em paz, onde tudo parecia achar-se nos seus definitivos lugares, sem que fosse preciso empreender modificações. Mas não era bem assim. Os rapazes tinham as suas aspirações, embora lhes falecesse a coragem de confessá-las ao pai, por quem experimentavam uma mescla de respeito e de temor, inculcada em seus espíritos pela educação britânica de sua mãe».

In Mário Domingues, O Regente Pedro, Príncipe Europeu, Empresa Nacional de Publicidade, Colecção de História de Portugal, nº 7, Lisboa, 1964.

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