sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Confissões de Uma Freira Pagã. Romance histórico. Kate Horsley. «… onde pequenas criaturas que vivem maioritariamente debaixo da terra, despejam o seu despeito em escuros rituais de purificação. Ela disse-me mais do que uma vez: … ‘uma alma não pode viver com muito despeito, tal como um corpo não pode viver só de comida amarga’»

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Confissões de uma freira pagã. Declaração
«(…) Ainda consigo lembrar-me visualmente dos fortes carvalhos e pinheiros que abraçavam a minha túath, e o meu olfacto recorda ainda o aroma da erva macia, ao lado dos campos sulcados. Mas a minha ligação ao povo de Tarafhlaith esvaziou-se lenta e continuamente, como água a sair de um vaso rachado. Muitos festins tornavam-se concursos entre aqueles que bebiam cerveja a mais e acusavam os seus vizinhos de lhes matar ou roubar os porcos, porque a nossa carne e o nosso pão tinham uma enorme valor, ninguém podendo estar certo de ter um sustento diário, apesar de um homem ou uma mulher trabalharem desde a luz rosácea até à luz pardacenta para usufruírem de uma única refeição. Poucos eram como a minha mãe que erguia os olhos da sua tigela de comida para olhar as estrelas, ou ouvir a cotovia a penetrar cada vez mais na floresta. Até hoje sinto a influência da minha mãe. Agora já não posso pegar-lhe na mão quente, por isso falarei do seu carácter. Em todas as escrituras que transcrevi, não existe qualquer relato sobre uma tal mulher. Eu não a chamo uma santa nem uma heroína, mas uma boa mãe que morreu no início das grandes mudanças, deixando-me com uma solidão irredimível. Deixai-me louvá-la aqui, para o caso de não existir outro lugar onde seja louvada, porque ela não morreu com a cabeça cortada numa batalha, nem de nenhuma outra maneira que pudesse levar a que fosse louvada nos salões dos chefes, ou no manuscrito cristão.
Eu confesso aqui que a minha mãe não era cristã, mas no tempo dela eram poucos os que sabiam da substituição dos nossos deuses pelos três deuses em um. Ela não venerava Deus, mas sim o que Ele criou e ela conhecia bem as plantas, mas não tanto quanto um estudioso. Os homens tonsilados ainda não estavam cá para dar os seus nomes em Latim às plantas. A minha mãe conhecia-as pelos seus verdadeiros nomes: fraechoga, crem, birer (frutos silvestres, alho bravo e agrião). Quando alguém ficava doente na túath, muitos ficavam contentes de ver os seus pés esbeltos, andando pelos caminhos de lama entre as cabanas com os seus ramos de ervas. Como eu era uma criança pequena, com membros que pareciam demasiado magros para terem qualquer uso, ia com ela para a floresta enquanto a minha irmã mais velha tomava conta dos porcos. A minha mãe ensinou-me a cheirar a terra que ela segurava na mão e a compreender o cheiro da fertilidade, para o comparar com o da infertilidade. Ela mostrou-me o círculo castanho e infértil na floresta, onde pequenas criaturas que vivem maioritariamente debaixo da terra, despejam o seu despeito em escuros rituais de purificação. Ela disse-me mais do que uma vez: … uma alma não pode viver com muito despeito, tal como um corpo não pode viver só de comida amarga. Às vezes, as criaturas amargas, que nos causam maldades dolorosas, eram os antigos que se tinham tornado pequenos e que eram liderados pela sua rainha, Bebo. Ainda irrompiam lutas, perdidas no tempo e ferozes, entre os súbditos de Bebo e os grandes, que também viviam debaixo da terra com os heróis mortos. Estes ainda discutem por causa do gado roubado, morto há tanto tempo que os vitelos dos seus vitelos já se tornaram pó, mas estas histórias são ainda contadas nos festins e são até traduzidas pelos cristãos, que outorgam o seu poder sobre os povos desta terra. Mas a minha mãe falava das maneiras de tirar partido da vida dura, não de como roubar gado. Ela não se envergonhava da sua beleza, nem de esfregar as mãos com óleo perfumado, nem de abandonar o festim quando as histórias de guerras dos homens se prolongavam demais.
Já em criança, leve como a palha, e quase sem esperança de viver até ser mulher, eu não tinha qualquer interesse nas histórias de razias sobre os diversos reinos, com o objectivo de se possuir mais um outro touro. Em vez disso, eu ocupava o espírito com o mistério dos lugares e com os seres que não podemos ver, como se fossem uma árvore ou um cavalo, uma malga ou um homem. Podia perguntar à minha irmã ou ao meu pai sobre a saúde dos porcos, mas era com a minha mãe que eu ia ter para perguntar se as florestas tinham fim, ou se as estrelas eram olhos de criaturas no céu. Perguntei-lhe se o meu avô estava sentado à mesa de banquete debaixo da terra, com a sua cabeça cortada na mandíbula. O terror coagulava-me o leite no estômago quando pensava que ele seria incapaz de comer as iguarias lá servidas, carnes e queijos a todas as refeições. Desde então, já sonhei com ela e com a minha tia, sentados com o Nosso Senhor Jesus Cristo na Última Ceia. Neste sonho, ele está irado porque a mandíbula não fecha e não lhe permite comer, por isso vira a mesa e entorna toda a comida para o chão. A minha mãe admitia desconhecer a condição do pai no pós-vida, ou se os mortos sofriam ou não sofriam. Ela abanava tristemente a cabeça quando não conseguia responder e, pegando-me nas mãos, apertava-as como que a moldá-1as. Uma vez ela disse: … pára os teus pensamentos! Observa as nuvens a flutuar em formas diferentes. E eu assim fiz, dando-lhe tempo para desenterrar as razes que ela utilizava para dar sabor às nossas tigelas de´comida. Ela era uma mãe muito inteligente, que conseguia dar-se, ao mesmo tempo, a si e à sua filha. Quando uma flor branca surgiu e se manteve corajosamente entre os sulcos lamacentos feitos pelas patas dos porcos nas pocilgas, a minha mãe disse: … aqui está uma mensagem para ti, Gwynn, que nem toda a beleza é esmagada antes de se poder mostrar entre os porcos».

In Kate Horsley, Confessions of a Pagan Nun, Confissões de Uma Freira Pagã, Romance Histórico, Ésquilo, Lisboa, 2002, ISBN 972-8605-18-8.

Cortesia Ésquilo/JDACT