sábado, 30 de novembro de 2013

El rei João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «Como aquele criado do duque, cujo nome é melhor esquecer, que lhe levou a cabeça decepada, de olhos negros de sangue, ao Rei a pedir tributo e acrescentamento. Vae Victis!»

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A Morte do Cisne no Campo do Leão
«(…) Recordava-se do ar extasiado de Pedro, quando meteram pela estreita garganta do Cédron e subiram o vale de Josafat ladeado de sepulcros excisados na rocha... E depois, Senhor, Jerusalém toda de oiro (é assim que os miseráveis judeus a cantam, eles que foram expulsos pelos seus pecados e que nem a seiscentos chegam, e vivem como desgraçados pedintes da cidade que pertenceu a Salomão). Que diferentes dos ricos judeus dos Reinos cristãos, com as bolsas repletas de oiro do comércio! Ali, em Jerusalém, perdidos como ovelhas tresmalhadas, entre Turcos, Árabes, Arménios, Caldeus, e Deus sabe lá mais quem, até metiam dó! Aproximavam-se da Ribeira de Alfarrobeira debruada de ulmeiros e choupos. Aí fez-se o arraial da hoste do Infante que, em breve, era cercado pelo exército real, como se se tratasse de um exército inimigo. Depois, como um bando de músicos bem orientado, os arautos do Rei acompanhados pelo fragor tonitruante dos trombeteiros, começaram a gritar avisos aos servidores do duque de Coimbra: - Abandonem o Infante! Abandonem os traidores! Abandonai o rebelde em nome d'El Rei, D. Afonso! Mas havia deserções em ambos os lados. Depois, mais para o fim do recontro, foi pior.
Os besteiros do exército real meteram-se na água, encobertos pelos arbustos, canaviais e árvores, e começaram a disparar sobre o campo inimigo. O Regente Pedro ouvia os gritos dos homens, quer dos que ripostavam, quer dos feridos. Já havia mortos e os urros de aviso e ódio entre os companheiros d'armas. Pedro ordenou aos homens que cuidavam das bocas de fogo que se aprestassem. Foram as bombardas postas em posição de tiro sobre o cabeço de onde tinham descido os besteiros! O seu alcance é pequeno, mais curto que as peças dos tempos dos Romanos, segundo os técnicos alemães e ingleses, mas servem e fazem estrago. Os homens que tinham encarretado as bombardas moveram-nas para o tiro. As balas de pedra partiram e uma delas, dada a falta de perícia do soldado, caiu junto da tenda do Rei. Foi um acidente, mas o último que faltava. Todas as forças do lado do Rei reagiram num assalto geral, em massa. Ao ver o efeito, os peões do Infante debandaram. O Regente Pedro, que então se achava quase desarmado, apeou-se. Apenas envergava uma leve cota, sobre ela colocara a jórnea de veludo de cor carmim e na cabeça a cervilheira. Teria esperado que o irmão Henrique ainda interviesse? Desalentado, meditava, mirando em redor... Olhou os filhos, dois garotos, tão espantados e pálidos como só o medo o pode conseguir e começou a combater com valentia. E, perante o ar atónito dos dois desgraçados jovens, de repente o pai entesou-se, atirou a cabeça para trás, ergueu um braço e tombou lentamente, a boca aberta, de onde corria um fio de sangue. Uma seta varara-lhe o coração. Certeira, implacável, definitiva, tão definitiva como só o pode ser a morte. O bispo de Coimbra mal teve tempo de lhe dar a absolvição, e fê-lo porque estava perto. Quem teria enviado aquela seta? O acaso? Alguém? Há crimes que são actos de benevolência para quem os pratica e para quem os possa sofrer. Foi fruto do ódio, da raiva, ou convinha que o Infante nunca mais estivesse frente a frente com o Rei?
O amigo Álvaro batalhava quando um dos homens, um seu pajem, a chorar, o avisou, exclamando: - Senhor conde, o Infante é morto. Senhor! Senhor! O duque é morto! Que fazeis, se já tudo acabou? Fugi, senhor, ou procurai o Rei. O conde Álvaro olhou-o: - Não digas a ninguém. Fica calado e já! Não digas a ninguém! Esporeou o cavalo e desmontou à pressa, à porta da tenda, com as cores da sua casa. Entrou. Vestiu as melhores roupas, as armas e ordenou que lhe dessem pão e vinho. Comeu o pão, orou e bebeu o vinho vermelho escuro como sangue. Cumprido o ritual de Irmão em Cruz, saiu a pé pelo arraial. O seu rosto sério, imperturbável foi-se tornando grave, carrancudo. Olhou em volta. Todos o reconheceram. Lutou até cair, trespassado de golpes. Ficou retalhado, os bocados espetados na terra embebida de seu sangue. Era a vingança da vilanagem que se cevava assim, sem mesmo saber porquê, como acontece sempre, porque muitas vezes se mata um bravo homem no campo da honra apostrofando-o de rebelde e cobarde. Como aquele criado do duque, cujo nome é melhor esquecer, que lhe levou a cabeça decepada, de olhos negros de sangue, ao Rei a pedir tributo e acrescentamento. Vae Victis! Ai dos vencidos, Senhor, e dos outros que esquecem que tudo se paga e a dor e a vingança se abatem sempre sobre os homens, como dantes até sobre os deuses!
O sonho do Regente Pedro terminara mesmo antes do corpo ser levado, com os dos outros, para uma pobre choupana, continuando a apodrecer, depois de três dias insepulto no campo. Assim se saciava o ódio dos seus inimigos em nome da Nação e de El Rei Afonso de Portugal que, por estranho que parecesse, era o único inocente desse crime. A pedido do irmão do conde de Avranches, foi-lhe dada sepultura, como a todos os outros seus companheiros de infortúnio, no próprio campo de batalha onde centenas de homens feridos e agonizantes se extinguiram durante três dias de tortura e horror como o exigia a cruel praxe da guerra e dos homens». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.

Cortesia de Editorial Presença/JDACT