segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Ensaios sobre Autores Portugueses do século XIX. Álbum de Família. Óscar Lopes. «Embora os estudos mais antigos sejam anteriores aos meus trinta anos e os mais recentes estejam dentro, já, na minha casa dos sessenta, julgo bem evidente, quer uma clara linha de consequência quer uma evolução…»

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De o Arco de Sant’Ana a Uma Família Inglesa
O Arco de Sant’Ana
«Iniciado durante o Certo do Porto, publicado o seu primeiro volume em 1844 e o segundo em 1850, com algum apoio documental fornecido por Herculano e reunido em notas finais, O Arco de Sant'Ana não pretende ser um romance histórico. Em Advertência, datada de Outubro de 1849, Garrett confessa abertamente: … o romance é deste século: se tirou o seu argumento do décimo-quarto, foi escrito sob as impressões do décimo-nono [...]. Entre as intenções declaradas em prefácio ao primeiro volume, e em muitos dos seus passos, sobressai a intenção de um ataque ao alto clero, às remanescências da nobreza feudal que tentavam consolidar-se, às novas baronias plutocráticas e ao apoio conjuntural de tudo isto pela pequena burguesia, factos que, aos olhos do autor, caracterizavam a contemporânea reacção autoritária do cabralismo. Quando, no capítulo inicial do segundo volume, retoma o fio do enredo, suspenso cinco anos antes, Garrett insiste em vituperar certos agiotas do catolicismo que abusam da boa fé da presente geração e pretendem granjear, em proveito seu, das suas pessoas, o espírito religioso da época.
E, embora em mais de um passo se mostre crítico em relação às conspirações dos  reis com o povo, de que o livro dá exemplo os reis foram demagogos, porque precisavam do povo para resistir primeiro, para destruir depois, a aristocracia eclesiástica e secular, Garrett, em termos romanescos e em termos doutrinários, mostra confiar ainda, ou confiar à falta de melhor, numa aliança do povo com a monarquia para se defender do omniabsorvente despotismo dos senhores das burras, dos alcaides-mores das bancas e de todo este feudalismo agiota, que é a lepra fatal da democracia, que a rói e carcome. De facto, O Arco de Sant'Ana não poderia ser uma obra de ressurreição da Idade Média cavaleiresca e monacal até porque, no prefácio de 1844, Garrett atribui à paixão do gótico em literatura e arquitectura uma importante quota-parte na reacção geral do tempo, chegando a proclamar que a reacção poética e religiosa, é uma só e a mesma. Compreende-se, deste modo, que Garrett se compraza a evocar um episódio de Fernão Lopes, em que um bispo é azorragado por Pedro, o Cru, e um-antigo levantamento popular onde se dão vivas a um el-rei Pedro que, imediatamente, nos lembram um outro Pedro já também então falecido, o Rei-soldado do Cerco de 1832-1834. O livro está, aliás, dedicado ao comandante do Corpo Académico durante o Cerco do Porto e subscrito, nessa dedicatória, por um camarada e amigo, um fraco mas fiel soldado da Pátria, o soldado n.º 72.
No entanto, para intrigar o leitor num enredo romanesco, para dar forma a certas pulsões que em Garrett não dispunham de um grande fôlego de estruturação narrativa, foi mesmo necessário recorrer a expedientes do género histórico romântico. O antídoto contra o goticismo consistiu em conferir um ar de paródia ou um acompanhamento lúdico a muitos dos principais passos da efabulação. Assim, ao conduzir-nos até ao paço episcopal quatrocentista, o autor evade-se a qualquer descrição arquitectónica com uma digressão bem-humorada sobre a inevitabilidade, imposta pela moda literária, de o estilo ser gótico, mesmo que se situasse em terras de moirama, o que aliás não era o caso. As reuniões do povo amotinado com os seus magistrados concelhios transformam-se numa expressa caricatura do senado romano (os vereadores são amiúde designados como patres conscripti) e sobretudo dos parlamentares constitucionais de S. Bento, com destaque para a lengalenga de um deputado de inesgotável eloquência sem sentido, que cita e parafraseia Shakespeare e aglutina alguns lugares-comuns da oratória e da imprensa liberais. Estas antecipações cronológicas ou, se me permitem um neologismo, estas e outras catacronias, para aquilo em que tal ou tal recanto portuense se transformará, cerca de quatro séculos depois, não buscam aquele efeito de profundidade histórica que Arnaldo Gama depois se empenhará em produzir, mas o de uma intencional dissipação de qualquer ilusionismo de atmosfera medieval». In Óscar Lopes, Álbum de Família, Ensaios sobre Autores Portugueses do século XIX, Editorial Caminho, Colecção Universitária, Lisboa, 1984.

Cortesia de Caminho/JDACT