sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Goa Antiga e Moderna. Frederico Diniz D’Ayalla. «Raça de mais fibra, energia trabalhadora, e devido parte às condições geológicas do terreno montanhoso, cortado de poucos rios, por vezes árido, e ao contacto de povos guerreiros como os maharatas, o povo de Bardez…»

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Estão pelos telhados e janelas velhos e moços, donas e donzelas. In Camões

Goa
«(…) A cidade da Velha Goa é o que aí se vê: desertos, ruínas e caveiras. Compassadamente o sino de ouro da Sé chama os cónegos a coro. Do vasto templo reboa, pelo espaço o angustioso grito do profeta, ad te, Domine, clamavi, como o único recurso de uma geração descrente e prostrada; uma aragem húmida e fria silva por entre a ramagem, e uma chuva de folhas secas junca o trânsito tapetado pela relva; o viajante evita cuidadosamente a cobra que rasteja por entre a folhagem; os gritos enchem o espaço de um zumbido triste e agonizante; um ou outro rendeiro de sura, sentado sobre o ramo da palmeira, solta estrídulos gritos (uh-uh!) como o piar do mocho agourento; algumas tonas quebram o silêncio das águas ao fanhoso e puxado cantar do marinheiro que desce o Mandovi... Para o coração português a sensação causada por aquela hecatombe é esmagadora. Os poucos templos que aí existem perecem antes umas lápides funéreas; a Natureza é uma elegia; o viajante sente-se vaguear em meio de sombras. Aquele sítio despovoado, plangente na voz desse sino, que tanto encantou o poeta, e que é como um grito do passado; as cúpulas e as torres desbotadas pelo tempo, que se alteiam quais ciprestes em meio daquele cemitério; o respeitoso silêncio do ermo, a pompa rude e homérica de ruínas seculares, tudo, enfim, fala e se agita com a placidez, dos séculos e a poesia dos destroços: um mundo parece acordar de entre aquele sepulcro imponente das nossas glórias:

A flor do Mandovi cai murcha e desfolhada!
Afilha de um jardim tapiza um cemitério!...

Do Tissuady, teatro dos nossos primeiros feitos nestas partes da Índia, convida-nos a montanhosa Bardez, terra de mulheres varonis e homens fortes. Transpomos o outeiro de Betim e logo descemos para o imenso vazio, que em alguma época geológica parece ter sido uma bacia para onde entrava o mar, que hoje banha as praias de Calangute. Do cimo desse outeiro o panorama é delicioso. Os montes correm caprichosamente dos Ghattes levantados aqui, deprimidos aí; descem para os vales, arredondam a superfície, levantam-se rudemente mais além, cobrindo a vista de um ponto, alargando os horizontes de outro, correndo em rolos entumecidos até se confundirem com as nuvens. Orlando o vale, espreitam as ermidas rurais, e os campanários erguem-se majestosos por sobre as palmeiras, espalhando por aquele âmbito a música alegre dos seus sinos. O vasto arrozal estende-se como uma alfombra matizada a capricho pela mão da Natureza. Quase ao meio está o Monte de Guirim, ilha de verdura, encristada pelo colégio do seu nome. Foi ali que, na doce contemplação do místico, uma alma pura e simples sonhou um dia criar um centro de luz e amor.
Mal pensava eu, educado nesse colégio, que teria de misturar com lágrimas o saudoso nome do meu santo mestre e amigo, padre Francisco Luís Gonzaga Ataíde, ao recordar-me hoje desse bando de crianças, para ele tinha todos os carinhos e desvelos de uma mãe. Meu bom mestre, fostes vós que, ao lado da minha viúva mãe, me infiltrastes na alma os bons sentimentos, que porventura possuo. Aqui vos agradeço, consagrando à vossa saudosa memória estas singelas palavras de um culto filial... De um lado do monte, vêem-se os canaviais de Saligão, jangadas de verdura balouçadas pelo vento; pequenos morros semeados de palmeiras, de bananeiras, e humildes casebres pululam pelo vale como recifes de coral; pelas encostas lobrigam os povoados, de que dá sinal o gomatte em festas domésticas, ou o estourar das recamaras ao som do bombo e caixa, nas festas religiosas da freguesia.
Raça de mais fibra, energia trabalhadora, e devido parte às condições geológicas do terreno montanhoso, cortado de poucos rios, por vezes árido, e ao contacto de povos guerreiros como os maharatas, o povo de Bardez tem desempenhado na história o papel característico da sua superioridade de raça e de génio. A emigração em grande escala para Bombaim, pondo-os em relação com um mundo mais activo, com classes trabalhadoras e enérgicas, tem-lhes modificado os hábitos, mais ou menos sedentários em outros dos seus conterrâneos. Aberta, pela sua posição geográfica, à incursão dos maharatas, pouca ou nenhuma influência tiveram em Bardez as imigrações do Canará, que, em tempos anteriores à nossa conquista, vieram invadindo as regiões meridionais das Ilhas e Salcete. Tudo faz crer na pureza, de raça dos seus habitantes: o seu génio altivo e empreendedor, o sentimento de família mais vivo e as suas aspirações pela liberdade. Foi Bardez a comarca revolucionária por excelência». In Frederico Diniz D’Ayalla, Goa Antiga e Moderna, Ésquilo edições e multimédia, Revisão de Adalberto Alves, 2011, ISBN 978-989-719-001-8.

Para Ofélia e Álvaro José, que estejam em paz!
Cortesia de Ésquilo/JDACT