domingo, 17 de novembro de 2013

Iniciação e Mistério no Antigo Egipto. Rogério Sousa. «Em Mérida, por exemplo, o culto de Ísis e de Serápis estava intimamente associado com o culto de Mitra. Uma inscrição latina conservada nos muros da Sé catedral de Braga aresta que aí tinha sido erguido um altar dedicado a Ísis por Lucrecia Fida»

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A Iniciação egípcia nas fontes clássicas
«(…) Contudo, as semelhanças evidentes nos relatos são notáveis e mostram claramente que a revelação dos mistérios estava conotada com a celebração de cerimónias nocturnas. A identificação do neófito com o Sol, como veremos, é outro detalhe que se detecta igualmente na tradição iniciática egípcia. Seja como for, é também interessante detectar no texto um profundo vínculo emocional entre o iniciado e a deusa. De acordo com a narrativa, Lucius permaneceu ainda alguns dias no santuário, absorto no prazer inefável de adorar a imagem da deusa, penhorado como estava por um benefício que jamais poderia pagar. E na iminência de regressar para a sua terra natal, Lucius entoa uma oração final à deusa:

(...) Veneram-te os deuses do céu e respeitam-te as subterrâneas potestades; tu fazes rodar o mundo, iluminas a luz do sol, reinas sobre o universo e calcas o Tártaro a teus pés. Os astros respondem diante de ti, as estações regressam segundo o teu arbítrio, alegram-se contigo os deuses, os elementos estão à tua disposição. A um sinal teu sopram as brisas, avolumam-se as nuvens, germinam as sementes e brotam os rebentos. Temem a tua majestade as aves que cruzam o céu, as feras que erram pelos montes, as serpentes que se escondem na terra, os monstros que nadam no mar.

Embora expressa numa língua estrangeira e povoada por imagens estranhas ao cosmos nilótico, a descrição da deusa possui um curioso contraponto em hinos redigidos nos templos greco-romanos do Egipto. Veja-se, por exemplo, o seguinte hino redigido em hieróglifos nas paredes do templo de Ísis, em Filae, onde o poder universal da deusa sobre a natureza é também expresso, mas desta vez recorrendo aos elementos do meio nilótico:

E ela que faz brotar a inundação,
Que faz viver a humanidade e faz crescer as plantas,
Que garante as oferendas divinas para os deuses,
E invocações para os espíritos transfigurados.
Pois ela é a deusa do céu,
O seu consorte é o senhor do mundo inferior
O seu filho é o senhor da terra,
O seu consorte é a água pura rejuvenescida
Em Biga de acordo com o seu ciclo.
Ela é a senhora do céu, da terra e do mundo inferior
Pois foi ela que os manifestou, através do que o seu coração concebeu e as suas mãos
criaram.
Ela é o bai que está em cada cidade
Cuida do seu filho Hórus e do seu irmão Osíris.

Necessariamente helenizado e portanto revestido por uma roupagem capaz de favorecer a sua assimilação, o culto de Ísis que se espalhou ao longo do império romano parece ter mantido alguma ligação ao conteúdo original do culto da deusa egípcia, muito embora seja de esperar que, quanto mais tardio e mais afastado da fonte maior será certamente a probabilidade de encontrar misceginações com cultos locais. Esta misceginação detectada nas fontes escritas torna-se evidente nos testemunhos arqueológicos. Em Mérida, por exemplo, o culto de Ísis e de Serápis estava intimamente associado com o culto de Mitra. Noutros casos, porém, o culto isíaco parece ter-se implantado espontaneamente, sem qualquer aparato cultual formal. Uma inscrição latina conservada nos muros da Sé catedral de Braga aresta que aí tinha sido erguido um altar dedicado a Ísis, por Lucrecia Fida, sacerdotisa de Augusto. As escavações arqueológicas efectuadas na Sé por uma equipa da Universidade do Minho sugerem que a igreja foi construída sobre as ruínas de um mercado, o local de onde é provavelmente originário o altar isíaco. Tratar-se-ia, deste modo, de um culto de cariz popular inserido no mercado e que, desse modo, revelaria bem o veículo de penetração do seu culto em Bracara Augusta: a actividade dos mercadores e marinheiros. Nesta longitude é pouco provável que o culto de Ísis se revestisse do carácter oficial que possuía nos templos de Roma e mesmo da Grécia, nem é de supor que algum rito iniciático lhe estivesse subjacente. Ainda que eventualmente desprovido de um contexto cultual formal, a difusão do culto prosseguiu movido pelo poder da deusa em tocar tanto os mais humildes como os poderosos, como é disso ilustrativo o altar dedicado por Lucrecia Fida». In Rogério Sousa, Iniciação e Mistério no Antigo Egipto, Ésquilo, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-8092-56-4.

Cortesia da Ésquilo/JDACT