sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Os Feitos de Fuas Roupinho na Crónica de 1419. Tiago Queimada Silva. «Dois capítulos da ‘Crónica’ são consagrados aos feitos de Fuas Roupinho, que era, segundo a mesma crónica, o senhor de Porto de Mós. Gani, rei da terra ‘onde ora he Cárceres e Valemça’, liderou uma expedição em terra de cristãos, atingindo o seu exército o termo de Porto de Mós»


Cortesia de wikipedia (vandamarques)

Resumo
«O presente estudo centra-se em dois capítulos específicos da Crónica de Portugal de 1419, dedicados às proezas de Fuas Roupinho. Tendo como objectivo uma melhor compreensão da funcionalidade que esses relatos incorporam, quando enquadrados nos propósitos político-ideológicos globais da crónica régia quatrocentista. Novos dados relativos à suposta identidade histórica do mítico almirante luso.

A Crónica de Portugal de 1419 sinaliza o nascimento de uma sólida tradição cronística régia, meio de transmissão de um discurso historiográfico bastante definido, consistente e sensível aos desígnios políticos da recém empossada dinastia de Avis. Por outro lado, ainda em relação às necessidades legitimadoras desta dinastia, a imagem idealizada de Afonso Henriques, como um semi-santo paladino da Cristandade, é plasmada no discurso historiográfico régio para prevalecer, a partir daí, sobre as representações alternativas do primeiro rei português, nomeadamente, as criadas em meios aristocráticos. No entanto, no seio da narrativa do reinado de Afonso Henriques na Crónica de 1419, constam dois capítulos cuja peculiaridade nos chama imediatamente a atenção, ao roubarem momentaneamente o protagonismo ao monarca luso. Neles se reportam os feitos de Fuas Roupinho, apresentado como senhor de Porto de Mós e almirante de uma frota portuguesa que cumpriu um papel importante nos combates marítimos e acções de pirataria contra os  muçulmanos, nos inícios da década de 80 do século XII. Pretendo clarificar alguns aspectos atinentes ao relato dos feitos de Fuas Roupinho na Crónica de 1419, bem como aventar algumas propostas sobre o significado ideológico que estas narrativas incorporam, no que respeita ao discurso historiográfico da dinastia de Avis, ou seja, tentar perceber em que medida elas se articulam com os propósitos legitimadores deste texto, produzido a mando do filho do rei João I, o então infante Duarte.

Fuas Roupinho na Crónica de 1419
Dois capítulos da Crónica são consagrados aos feitos de Fuas Roupinho, que era, segundo a mesma crónica, o senhor de Porto de Mós. De acordo com esta compilação, Gani, rei da terra onde ora he Cárceres e Valemça, acompanhado do seu irmão, liderou uma expedição em terra de cristãos, atingindo o seu exército o termo de Porto de Mós. Ao tomar conhecimento da aproximação dos muçulmanos, Fuas Roupinho decide abandonar o local. Deixando aí homens que pudessem defender o castelo, e esconde-se na serra que chamavom da Mondega. Daqui envia, de seguida, uma mensagem aos habitantes de Alcanede e de Santarém, na qual lhes pede que o auxiliem no combate contra o rei muçulmano que se dirige a Porto de Mós. Os mouros investem sobre o dito castelo, convencidos de que a tarefa a que se propunham seria facilmente concretizada, enquanto os homens que estavam escondidos com Fuas Roupinho lhe aconselham que vá imediatamente em socorro do seu castelo. O nobre português dirige então um discurso aos seus homens, onde lhes explica o seu plano, o qual consistia em esperar pelo anoitecer, quando os inimigos se encontrassem entorpecidos pelo sono, acometendo-os nessa altura. Por fim, o plano de Fuas Roupinho foi cumprido, obtendo os cristãos a vitória e aprisionando o rei Gani e o seu irmão, a 22 de Maio de 1218 (AD 1180), de acordo com a indicação da Crónica. Ambos foram levados a Coimbra e apresentados perante Afonso Henriques, que outorga muitas merçees a Fuas Roupinho, em consideração pelo seu feito.
A Crónica prossegue, no capítulo imediatamente posterior, com as outras proezas de Fuas, que à época, pousava com o rei em Coimbra. Por essa altura, os habitantes de Lisboa escrevem uma missiva a Afonso Henriques, na qual dão a conhecer que a cidade era assolada por uma frota de mouros, comandada por Ferneio d Alphamim, requerendo os lisboetas, por esse motivo, o auxílio régio. O rei encarrega Fuas Roupinho de ir a Lisboa, onde deveria armar uma esquadra para combater os muçulmanos, dando, ao mesmo tempo, instruções aos habitantes da cidade para que seguissem as ordens do recém nomeado almirante. Depois da armada a frota cristã, ela segue para o cabo Espichel, onde encontra as galés mouras. Trava-se, então, uma batalha naval, de onde saem triunfantes os cristãos, em Julho da era de 1218 (AD 1180). Depois de retornar a Lisboa, Fuas Roupinho escreve ao monarca português, comunicando-lhe a sua vontade, coincidente com a dos habitantes de Lisboa, de encetar uma guerra marítima contra os muçulmanos, pedido ao qual o rei prontamente acede. A frota liderada por Fuas parte para o Algarve, onde coreo a costa, admitindo o cronista, neste ponto, não ter encontrado fontes escritas que fornecessem quaisquer pormenores sobre esta operação militar. De seguida, a frota portuguesa ataca Ceuta, de onde traz grande espólio para Lisboa. Inebriados pelas vitórias alcançadas, Fuas Roupinho e os seus homens decidem repetir o ataque à cidade norte-africana, sendo, no entanto interceptados no estreito de Gibraltar por 54 galés muçulmanas, que derrotam as embarcações cristãs e trazem a morte ao próprio almirante português, em 17 de Outubro da mesma era de 1218 (AD 1180)».
In Tiago João Queimada Silva, Os Feitos de Fuas Roupinho na Crónica de 1419, História da Idade Média, Espaços, Poderes, Quotidianos, Universidade de Coimbra, Revista Portuguesa de História, tomo XLIII, 2012.

Cortesia de UCoimbra/JDACT