terça-feira, 2 de agosto de 2016

A Biblioteca Desaparecida. Luciano Canfora. «Na base, havia uma inscrição que Hecateu fez com que traduzissem para o grego: “sou Ramsés, rei dos reis”, dizia ela. E prosseguia: “se alguém quiser conhecer quão grande sou e onde me encontro, que supere uma de minhas obras”»

Cortesia de wikipedia e jdact

O túmulo do faraó
«Sob o reinado de Ptolomeu Sóter, Hecateu de Abdera esteve no Egipto. Subiu o Nilo até Tebas, a antiga capital das cem portas, cada uma delas tão ampla, segundo o que constava a Homero, que permitia a passagem de duzentos soldados, incluídos carros e cavalos. Ainda existiam, bem visíveis, os muros do templo de Amon. Muros com 24 pés de espessura, 405 cúbitos de altura, com um perímetro de dezenas e dezenas de estádios. Por dentro, tudo fora saqueado, desde que sobre o Egipto abatera-se Cambises, o louco rei dos persas, um verdadeiro flagelo, que até deportara para a Pérsia os artesãos egípcios, pensando em utilizá-los para os palácios de Susa e Persépolis. Um pouco mais adiante, estavam os túmulos reais. Delas restavam apenas dezassete. No vale das rainhas, os sacerdotes mostraram-lhe o túmulo das concubinas de Zeus, as nobres princesas consagradas à prostituição antes do matrimónio, em devoção ao deus. Mais além, deparou com um imponente mausoléu. Era o túmulo de Ramsés II, o faraó que combatera na Síria contra os hititas. Helenizado, seu nome seria Osimandias. Hecateu entrou. O ingresso era um portal de sessenta metros de comprimento e vinte de altura. Atravessou-o e se encontrou num peristilo com a forma de um quadrado, tendo cada lado cerca de vinte metros de comprimento: o tecto era um bloco único de pedra num azul profundo cravejado de estrelas. Esse céu estrelado era sustentado por colunas de aproximadamente oito metros. Mais que colunas, eram, na realidade, figuras esculpidas, uma diferente da outra, todas extraídas de blocos monolíticos. À medida que prosseguia, Hecateu ia anotando a planta do edifício. Agora estava novamente diante de um portal: semelhante ao da entrada, mas totalmente decorado com relevos e dominado por três estátuas, todas elas extraídas de blocos de pedra negra. Entre as três, a maior (a maior estátua existente no Egipto, garantiram-lhe os sacerdotes) a tal ponto ultrapassava as outras duas que estas chegavam-lhe aos joelhos. A estátua gigantesca, cujos pés mediam quase quatro metros, representava Ramsés. Aos seus joelhos, de um lado a mãe, de outro a filha. Na sala do céu estrelado, o tecto tinha oito metros de altura; aqui, quase se perdia de vista, e a inesperada mudança da altura do céu, de sala para sala, desconcertava ainda mais o visitante. O que particularmente impressionou Hecateu foi que a enorme estátua de Ramsés era extraída de um bloco único, não apresentando sequer um arranhão ou mancha. Esta obra, anotou, é admirável não só pelas dimensões, mas principalmente pela técnica com que foi trabalhada e pela natureza da pedra. Na base, havia uma inscrição que Hecateu fez com que traduzissem para o grego: sou Ramsés, rei dos reis, dizia ela. E prosseguia um tanto obscuramente: se alguém quiser conhecer quão grande sou e onde me encontro, que supere uma de minhas obras. A frase não era unívoca. Quão grande, obviamente, podia referir-se às dimensões. Tal interpretação podia ser corroborada pelo facto de que aquelas palavras se encontravam justamente aos pés da gigantesca estátua, e de qualquer maneira não destoavam muito da outra curiosidade que o faraó prometia satisfazer: onde me encontro. Mas quão grande também podia ter um valor metafórico, isto é, não se referir à estatura, mas, por exemplo, às obras mencionadas logo a seguir. E também a outra expressão, onde me encontro, exactamente como convite ou desafio a descobrir o sarcófago, dava a entender que sua localização era oculta e permitida apenas sob certas condições. Em todo caso, o visitante curioso, a partir daí, era desafiado, convidado a uma prova. Ela também formulada de maneira ambígua: que supere uma de minhas obras, isto é, realize, ao que parece, empreendimentos ainda maiores do que os meus. Se tal era a interpretação correcta, trata-se essencialmente de uma proibição. A enorme estátua se apresentava ao visitante ainda no início de seu caminho, e o desencorajava na busca do sarcófago. Mas seria a única interpretação possível? Contudo, Hecateu e seus acompanhantes continuaram. Isolada na enorme sala, sobressaía-se uma outra estátua, com cerca de dez metros de altura, representando uma mulher com três coroas. Aqui, o enigma foi-lhe imediatamente esclarecido: era, disseram-lhe os sacerdotes, a mãe do soberano, e as três coroas significavam que fora filha, mulher e mãe de um faraó. Da sala das estátuas passava-se para um peristilo ornamentado de baixos-relevos representando a campanha do rei na Bactriana. Ali, os sacerdotes também deram informações histórico-militares: naquela campanha, disseram eles, o exército do rei contava com 400 mil infantes e 20 mil cavaleiros, divididos em quatro formações, cada uma delas comandada por um dos filhos do rei. A seguir, elucidaram os baixos-relevos. Mas nem sempre concordavam nas explicações. Por exemplo, diante da parede onde se representava Ramsés empenhado num cerco, tendo ao lado um leão, uma parte dos intérpretes, anotou Hecateu, declarou se tratar de um verdadeiro leão, que, domesticado e criado pelo rei, enfrentava a seu lado os perigos nas batalhas; outros, pelo contrário, consideravam que o rei, inquestionavelmente corajoso, mas ao mesmo tempo ávido por louvores a ponto de beirar a vulgaridade, fizera-se representar com o leão para indicar a audácia de sua alma. Hecateu se dirigiu à parede seguinte, onde estavam os inimigos vencidos e os prisioneiros, todos representados sem mãos e sem órgãos genitais: pois efeminados, explicaram-lhe, e sem força perante os perigos da guerra. Na terceira parede estava representado o triunfo do rei retornado da guerra e os sacrifícios por ele realizados em agradecimento aos deuses. Ao longo da quarta parede, por sua vez, destacavam-se duas grandes estátuas sentadas, que a recobriam parcialmente. Lá, bem junto às estátuas, havia três passagens. Este é o único caso em que Hecateu indica explícita e pormenorizadamente o tipo de acesso de um aposento ao seguinte. Por essas três passagens entrava-se numa outra ala do edifício, onde se celebravam, não mais as gestas guerreiras, e sim as obras de paz do faraó». In Luciano Canfora, A Biblioteca Desaparecida, 1986, Companhia das Letras, 1989, ISBN 978-857-164-051-1.

Cortesia da CdasLetras/JDACT