segunda-feira, 15 de agosto de 2016

A Ceia Secreta. Javier Sierra. «O plano do Mouro, sussurrou meu secretário, como se deixasse ali uma pesada carga. Não entende, frei Agustín? Explica o que pretende realmente fazer em Santa Maria delle Grazie. Quer fazer magia»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Áugure
«(…) Essa é a peça que falta para montar este quebra-cabeça. Sua presença merece uma explicação. É que, além de meus avisos ao santo padre e às mais altas instâncias da ordem dominicana sobre o rumo errático que tomava o ducado de Milão, existia outra fonte de informação que abundava em meus temores. Era uma testemunha anónima, bem documentada, que toda semana remetia a nossa Casa da Verdade cartas detalhadíssimas, denunciando a deflagração de uma gigantesca operação de magia nas terras do Mouro. Suas missivas começaram a chegar no Outono de 1496, quatro meses antes da morte de donna Beatrice. Eram enviadas à sede da ordem em Roma, no convento de Santa Maria sopra Minerva, onde eram lidas e guardadas como se fossem a obra de um pobre diabo obcecado com os pretensos desvios doutrinais da casa Sforza. E não os culpo. Vivíamos tempos loucos, e as cartas de um visionário não eram muito favoráveis a nossos padres superiores. Ou a quase todos. Foi o arquivista de Minerva que me falou dos escritos desse novo profeta na assembleia geral de Betânia. Deveria lê-las, disse. Assim que as vi pensei em você. Verdade? Lembro-me dos olhos de coruja do arquivista, pestanejando de emoção. É curioso: foram escritas por alguém com os mesmos temores que você, padre Leyre. Um profeta apocalíptico, culto, muito versado em gramática, como a cristandade não via desde os tempos de frei Tanchelmo de Antuérpia. Frei Tanchelmo? Oh… Um velho maluco do século XII, que denunciou a Igreja por ter se transformado em um bordel e acusava os sacerdotes de viver em concubinato permanente. Nosso Áugure não chega a tanto, mas, pelo tom de suas cartas, não creio que tarde muito a chegar. O arquivista, encurvado e resmungão, acrescentou algo mais: sabe o que o faz diferente de outros loucos? Balancei a cabeça negativamente. Que parece mais bem informado que qualquer um de nós. Esse Áugure é maníaco por precisão. Sabe de tudo! Aquele frade tinha razão. Suas folhas de papel amarelado e fino, escritas com uma caligrafia impecável e amontoadas em uma caixa de madeira com o carimbo de reservado, referiam-se com obsessiva insistência a um plano secreto paratransformar Milão em uma nova Atenas. Algo assim era o que eu suspeitava já fazia tempo. O Mouro, como os Medicis antes dele, estava entre esses dirigentes supersticiosos que acreditavam que os antigos possuíam conhecimentos do mundo muito mais avançados que os nossos. Era uma velha ideia, essa. Segundo ela, antes de Deus castigar o mundo com o dilúvio, a humanidade havia desfrutado de uma Idade do Ouro próspera, que primeiro os florentinos e agora o duque de Milão queriam reinstaurar a todo custo. E, para isso, não hesitariam em deixar de lado a Bíblia e os preconceitos da Igreja, cientes de que, naquele tempo de glória, Deus ainda não havia criado uma instituição que o representasse.
Mas ainda havia mais: suas cartas insistiam em que a pedra angular daquele projecto estava sendo colocada debaixo do nosso nariz. Sendo certo o que dizia, a astúcia do Mouro era infinita. Seu plano para transformar seu feudo na capital do renascimento da filosofia e da ciência dos antigos se apoiaria sobre uma coluna desconcertante: nada menos que nosso novo convento em Milão. O Áugure conseguiu me surpreender. Fosse quem fosse o homem que se escondia por trás dessas revelações, ele as havia levado mais longe do que eu jamais me teria atrevido. Como me advertiu o arquivista, parecia ter olhos em todos os lugares. Já não só em Milão, e sim na própria Roma, pois algumas de suas últimas cartas vinham encabeçadas por um Augur dixit que nos desconcertou. que tipo de confidente estávamos enfrentando? Quem, senão alguém muito enfronhado na cúria, poderia saber como o designavam os escrivães de Betânia? Nenhum de nós soube a quem apontar. Naqueles dias, o convento a que se referia em suas mensagens, o de Santa Maria delle Grazie, estava em obras. O duque de Milão havia designado os melhores arquitectos do momento para sua edificação: encomendou o púlpito da igreja a Bramante, os interiores a Cristoforo Solari, e não economizou uma moeda no pagamento dos melhores artistas para que decorassem cada uma de suas paredes. Queria transformar nosso templo no mausoléu de sua família, o lugar de repouso eterno, que imortalizaria sua memória pelos séculos dos séculos. Contudo, o que para os dominicanos era um privilégio, para o autor daquelas cartas era uma terrível maldição. Anunciava grandes penalidades para o papa, se ninguém pusesse fim àquele projecto, e augurava uma época negra, fatal, para a Itália inteira. O anónimo remetente daquelas mensagens havia conquistado a pulso, de facto, o apelido de Áugure. Sua visão da cristandade não podia ser mais nefasta.
Ninguém deu ouvidos àquele anónimo diabo até à manhã que chegou a sua 15ª missiva. Nesse dia, frei Giovanni Gozzoli, meu assistente em Betânia, irrompeu no scriptorium em grande alvoroço. Agitava no ar uma nova mensagem do Áugure, e, alheio aos olhares reprovadores dos irmãos que ali estudavam, dirigiu seus passos para minha mesa: frei Agustín, deve ver isto! Deve lê-lo de imediato! Eu nunca havia visto frei Giovanni tão alterado. O jovem frade passou a nova carta à frente dos meus olhos, e, com a voz muito afectada, sussurrou: é incrível, padre. In-crí-vel. O que é incrível, irmão? Gozzoli respirou fundo: a carta. Esta carta… O Áugure… Mestre Torriani pediu que a lesse de imediato. O mestre? O piedoso Gioacchino Torriani, 35º sucessor de São Domingos de Gusmão na Terra e principal responsável por nossa ordem, nunca havia levado a sério aquelas mensagens anónimas. Despachara-as com indiferença e, em algumas ocasiões, até me recriminara por lhes dedicar meu tempo. Por que havia mudado de atitude? Por que me enviava essa nova carta com o pedido de que a examinasse de imediato? O Áugure… Gozzoli engoliu em seco. Sim? O Áugure descobriu em que consiste o plano. O plano? A mão de frei Giovanni ainda segurava a mensagem. Tremia em razão do esforço. A carta, uma folha com o selo de lacre partido, pousou suavemente sobre minha mesa. O plano do Mouro, sussurrou meu secretário, como se deixasse ali uma pesada carga. Não entende, frei Agustín? Explica o que pretende realmente fazer em Santa Maria delle Grazie. Quer fazer magia! Magia?, eu estava atónito. Leia!» In Javier Sierra, A Ceia Secreta, 2013, Editora Planeta, 2014, ISBN 978-854-220-327-1.

Cortesia de EPlaneta/JDACT