terça-feira, 23 de agosto de 2016

Nó de Sangue. Agustín Sánchez Vidal. «Havia muito que Sebastián Fonseca não entrava num teatro. E muito menos naquele. E nunca o teria feito se o pai não lho pedisse de maneira tão insistente»

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O tesouro escondido dos Incas
1573
«O pescador fez girar o leme do barco e avisou os dois filhos, que trabalhavam na proa. A rede, a abarrotar de pescado, fervia. A lua cheia, erguida no alto da noite, brilhando nas escamas dos peixes, tornava desnecessária a luz do farol. Ao dobrar o rochedo, distinguiu o navio enorme e todo negro, das velas ao casco. Encolheu-se ao vê-lo surgir como um fantasma no meio da névoa. Fundeava num lugar calmo, sem ondas, movendo-se misterioso e sombrio, com todos os fanais de posição apagados. Já tinha ouvido falar do Buque Negro. Era visto aqui e ali, cúmplice de escuras missões secretas. Sem deixar rasto. Os jesuítas e as suas tramóias, dizia-se em voz baixa. Uma aranha negra e incansável que percorria a sua teia bem urdida. Outros afiançavam que andava pelas costas ao serviço de quem mais pagasse, embarcando e desembarcando o que não podia ser declarado nos portos ou nas alfândegas. Quando o pescador apagou a luz, já era tarde demais. Acometeu contra eles um bote silencioso, com as pás dos remos embrulhadas em trapos. Saiu do meio de um penhasco, abordando-os pela proa, com o ruído do estilhaçar da madeira. Apressou-se a avisar os filhos, mas estes já não puderam reagir. Foram derrubados para o fundo do barco, onde os passaram à faca. Os assaltantes dirigiram-se então para ele. O seu gancho pouco pôde fazer contra a espada que o atravessou de lado a lado. Nos estertores da consciência pareceu-lhe ouvir os protestos de um homem e a voz de uma mulher a gritar num idioma estrangeiro. Não na língua de mouros ou berberes, mas noutra que não se utilizava naquelas costas. E ainda conseguiu perceber a réplica de um marinheiro: façam calar a índia e o jesuíta! O pescador caiu para cima da alavanca do leme e logo bateu contra o estribo. As ondas lamberam-lhe a cara, o sangue gotejou até escurecer os reflexos metálicos dos peixes que davam freneticamente às barbatanas para escaparem da rede que se afundava. Quando as cordas da rede desapareceram debaixo da água, os peixes, espavoridos, dispersaram-se. E com o seu desaparecimento cessaram todos os sinais de vida. 
1780. Madrid
Havia muito que Sebastián Fonseca não entrava num teatro. E muito menos naquele. E nunca o teria feito se o pai não lho pedisse de maneira tão insistente. Nessa tarde estava com um certo receio, havia anos que fugia daquele lugar e daquele momento. Arvorou um ar de superioridade. Ergueu a cabeça, pondo em realce os traços firmes do rosto, o inconfundível perfil de talhe bem vincado, o queixo impetuoso, as maçãs do rosto proeminentes, a pele bronzeada, o cabelo muito preto, o nariz bem traçado e de narinas largas. Como bom galã, franqueou a porta dando o braço a Frasquita, atento às suas indicações. Via que ela se orgulhava dele. Nem todas as mulheres podiam gabar-se de sair com um militar tão bem posto e garboso como Sebastián, que parecia dez anos mais novo do que era. Frasquita estava ainda mais contente por não ter de assistir à função com o marido que lhe tornava impossível o contacto com as amigas e os mexericos. Falavam umas com as outras, é claro, dos chichisbéus ou dos galanteadores que cada uma tinha. De como um marido ilustrado e moderno deveria virar a cara para o outro lado quando a sua mulher adoptava um daqueles janotas da guarda, uma vez que as casadas mal servidas bem necessitavam de um cachorro, de um macaquinho ou de um galã que as distraísse. Era como se em Madrid se tivesse instalado um diabo coxinho que andava de um lado para o outro, remexido, baralhando os desejos, acabando por não se saber se aquilo era vício, virtude, moda ou, simplesmente, Espanha. Como era de temer». In Agustín Sánchez Vidal, Nó de Sangue, 2008, Editorial Presença, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-234-291-9.
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