quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Notas sobre a Identificação Social Feminina nos finais da Idade Média. Iria Gonçalves. «… tanto o nome próprio como o patronímico remetem para a esfera do privado e interessavam apenas um restrito grupo de pessoas constituído por familiares e eventualmente alguns amigos»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) É sabido que a estrutura do nome durante os últimos séculos medievais, em Portugal como em todo o Ocidente europeu, se firmava essencialmente sobre dois elementos, um dos quais o nome próprio e podendo variar o segundo. Como já acima ficou lembrado. É a realidade que os dados em análise nos mostram. A imensa maioria das mulheres nomeadas, tanto no norte do Alentejo como no Algarve, era-o dentro de um sistema antroponímico a dois elementos. Naturalmente, se compararmos estes valores com outros obtidos a partir de listas presenciais, eles pecam por defeito, mas é esta uma situação previsível, na medida em que o esquecimento, ou ignorância, de um ou outro onomato a fazer parte da denominação de outrem é sempre possível. Daí os valores bastante elevados de antropónimos com apenas um elemento, só o nome próprio ou só o apodo, que em regra ocorrem em amostragens com as características das que estão em análise. Na verdade, os 10,6% e 11,1% de nomes únicos aqui registados não podem corresponder à realidade onomástica, mas correspondem, isso sim, ao conhecimento social dessa realidade. Sobretudo, porque aqueles valores abrangem, no seu maior número, designações representadas apenas por um apodo, aliás, com preponderância particularmente relevante no Alentejo e ninguém podia dispensar o seu nome próprio. Se o segundo elemento do antropónimo era, na onomástica pessoal portuguesa, maioritariamente constituído por um patronímico, essa característica acentuava-se, em regra, na antroponímia feminina, onde o uso do apodo podia tornar-se muito raro, ao menos quando registado na presença da própria e, portanto, assumido por ela. É assim que se apresentam ambas as listas agora em análise, embora os valores atingidos pelo patronímico se pudessem esperar mais elevados, enquanto, pelo contrário, os que couberam ao apodo se tenham revelado bastante altos. Nada, porém, que justifique grandes reparos.
Já não assim se considerarmos separadamente os registos respeitantes aquelas mulheres que se apresentavam sozinhas perante a sociedade e as que aí entravam integradas num grupo, isto é, à sombra de uma figura tutelar que as acompanhava e protegia. No caso das mulheres alentejanas o patronímico está presente de forma bastante bem consolidada em ambos os grupos, mas com um valor bem mais significativo quando olhamos aquele grupo cuja identificação se apoiou em outrem: 70,4% e 85,3%, respectivamente. Como não podia deixar de ser, o apodo sofreu uma evolução inversa: 33,6% e 15,7%. Mas esta tendência mostrou-se particularmente nítida no caso algarvio onde, inclusive, se regista um maior número de apodos que de patronímicos entre o grupo de mulheres com a sua identificação social não apoiada. Facto que se revela de todo inusitado. No outro conjunto a diferença é grande em sentido contrário: 80% os primeiros, 16,7% os segundos. Como é sabido, tanto o nome próprio como o patronímico remetem para a esfera do privado e interessavam apenas um restrito grupo de pessoas constituído por familiares e eventualmente alguns amigos, ao menos quando os padrinhos não faziam parte da parentela e escolhiam ou ajudavam a escolher o primeiro apelativo do seu afilhado. Ambos se encontravam de algum modo prestigiados: o primeiro porque, sacralizado pela Igreja aquando do baptismo e sendo já nesta época um nome de tradições cristãs, obtinha para o neófito uma protecção celeste, na pessoa do Santo que anteriormente usara o mesmo apelativo; o segundo porque, remetendo directamente para o pai, a figura central de qualquer agregado doméstico, publicitava a integração do indivíduo nesse mesmo grupo, aí o enraizando e, nessa medida, conferindo-lhe a credibilidade que a Idade Média dificilmente concedia aos desenquadrados, aqueles que não tinham consigo um grupo solidário e arreigante. Por sua vez, o apodo era um elemento espúrio, criado pela comunidade e imposto, quantas vezes a contra-vontade, aquele a quem era aplicado. É certo que muitos desses apodos eram inócuos e assim aqueles que remetiam para a morada ou a profissão. Outros eram mesmo necessários: os que designavam um imigrante e serviam, na medida em que reconheciam a sua origem, para o credibilizar». In Iria Gonçalves, Notas sobre a Identificação Social Feminina nos finais da Idade Média, Instituto de Estudos Medievais, IEM, Ano 4, Nº 5, 2008, ISSN 1646-740X.

Cortesia de IEM/JDACT