terça-feira, 13 de setembro de 2016

A Feiticeira de Florença. Salman Rushdie. «… o lenço de seda de uma deusa pagã da antiga Soghdia, dado a um herói esquecido como prova de seu amor; um pedaço de um rico entalhe em marfim de baleia representando uma caçada a um gamo; um medalhão…»

jdact e wikipedia

«(…) Ele tirou da caixa um certo número de pedras preciosas de assombrosos tamanho e limpidez que pôs de lado com um levantar de ombros desdenhoso, depois um lingote de ouro espanhol que lançaria em esplendor pelo resto de seus dias qualquer homem que o encontrasse. Isto não é nada, nada, murmurou, e só então chegou a seus reais tesouros, cada um embalado cuidadosamente em pano e acolchoado em ninhos de papel amassado e farrapos: o lenço de seda de uma deusa pagã da antiga Soghdia, dado a um herói esquecido como prova de seu amor; um pedaço de um rico entalhe em marfim de baleia representando uma caçada a um gamo; um medalhão com o retrato de Sua Majestade, a Rainha; um livro hexagonal encadernado em couro da Terra Santa, em cujas minúsculas páginas, em escrita miniaturizada, com adornos de excepcionais iluminuras, havia o texto integral do Alcorão; uma cabeça de pedra da Macedónia com o nariz quebrado, que se dizia ser um retrato de Alexandre, o Grande; um dos selos crípticos da civilização do vale do Indo, encontrado no Egipto, mostrando a imagem de um touro e uma série de hieróglifos jamais decifrados, um objecto cujo propósito ninguém conhecia; uma pedra chinesa, chata e polida, gravada com um hexagrama escarlate do I Ching e marcas escuras naturais que pareciam uma cadeia de montanhas ao anoitecer; um ovo de porcelana pintado; uma cabeça reduzida feita pelos indígenas da floresta tropical da Amazónia; e um dicionário da língua perdida do istmo do Panamá, cujos falantes foram todos extintos a não ser uma única velha que não conseguia mais pronunciar direito as palavras por ter perdido os dentes.
Lorde Hauksbank desse Nome abriu um gabinete de vidro precioso que sobrevivera milagrosamente o atravessar de muitos mares, tirou de dentro um conjunto de dois cálices redondos opalescentes de Murano e serviu uma dose suficiente de conhaque em cada um. O clandestino aproximou-se e levantou o copo. Lorde Hauksbank respirou fundo, depois bebeu. Você é de Florença, disse, então conhece a majestade daquele mais alto soberano, o eu individual humano, e as sedes que ele procura aplacar de beleza, de valor, e de amor. O homem que se chamava Uccello começou a responder, porém Hauksbank levantou a mão. Eu vou falar, continuou, porque assuntos há para discutir dos quais seus eminentes filósofos nada sabem. O eu pode ser real, mas sente fome como um pobre. Pode se alimentar por um momento na contemplação de maravilhas encasuladas como estas, mas continua sendo uma coisa pobre, esfaimada, sedenta. E é um rei em perigo, um soberano para sempre à mercê de muitas insurreições, de medo, por exemplo, e de ansiedade, de isolamento e confusão, de um estranho orgulho indizível e de uma vergonha silenciosa e louca. O eu é assolado por segredos, segredos o devoram constantemente, segredos destroçarão seu reino e deixarão seu ceptro quebrado sobre a poeira.
Vejo que estou assustando você, ele suspirou, então vou me mostrar inteiro. O segredo que você nunca divulgará a ninguém não jaz escondido numa caixa. Jaz, não, não jaz, porque está bem vivo!, aqui. O florentino, que tinha intuído a verdade sobre os desejos ocultos de lorde Hauksbank algum tempo antes, expressou com ar solene seu respeito pelo volume e circunferência do membro pintalgado que jazia sobre a mesa de sua lordeza com um leve cheiro de funcho, como uma salsicha finocchiona à espera de ser fatiada. Se desistir do mar e vier viver em minha cidade, disse ele, seus problemas logo terminarão, porque entre os jovens galantes de San Lorenzo com certeza encontraria os másculos prazeres que procura. Eu próprio, lamentavelmente... Beba, ordenou o milorde escocês ficando muito vermelho e se cobrindo. Não falemos mais disso. Havia um brilho em seu olho que seu companheiro desejou não estivesse em seu olho. Sua mão estava mais perto do punho da espada do que seu companheiro gostaria que estivesse. Seu sorriso era o ricto de uma fera. Seguiu-se um longo e solitário silêncio, durante o qual o clandestino compreendeu que sua sorte oscilava. Então, Hauksbank esvaziou o copo de conhaque e soltou um riso feio e angustiado. Bom, meu senhor, gritou, agora conhece o meu segredo e tem de me contar o seu, porque decerto há um mistério em você, que eu tolamente tomei pelo meu próprio, e agora quero saber». In Salman Rushdie, A Feiticeira de Florença, Publicações dom Quixote, 2008, ISBN 978-972-203-692-4.

Cortesia de PdQuixote/JDACT