sábado, 10 de setembro de 2016

Contos. História do Gêbo. Raul Brandão. «Ó homem, mas então?, toda a gente se arranja e tu estás sempre na cepa torta! Deixa estar, mulher! As coisas não vão como tu pensas. Ora não vão, não vão!...»

jdact e wikipedia

«(…) Ando aí com um negócio... Sabes tu que mais?... Deixa-me trabalhar. Sossega. Nem na cova! Ia a mãe deitar-se e Sofia, até aí silenciosa, dizia erguendo-se: pai, não se aflija. Eu não, filha, eu não. Aquilo é génio, coitada, tem razão, tem sofrido muito. Vai tu também prá cama. Dá cá um beijo... Assim. Eu cá fico com a escrita. Boa noite. Sozinho, o Gêbo cismava muito tempo, olhando a luz. Depois, horas e horas, ouvia-se a pena correr no papel, parar, tornar... E vão cinco, e vão sete... noves fora nada..., até que a vista se lhe toldava, e a desoras, embrulhado no cobertor, tombava sobre a mesa, soluçando: não posso! Não posso mais! E tinha uma letra tão linda! Na própria desgraça caem por vezes resquícios do sol. Houve tempo em que respiraram. Tinham-lhe dado escritas, mas faltava a luz dos olhos, e a vida de expedientes tornara mais aziaga. Achavam-no ridículo, ninguém o tomava a sério a esse homem gordo e chorão, que vivia com esta pedra a moê-lo e a gastá-lo, a sorte da filha.
Quase sempre ao deitar falavam da filha. É o que nos vale, a nossa filhinha, Sempre nos dá mais ânimo. É tão boa, tão nossa amiga!... A velha trabalhava, ruminava projectos desconexos para enriquecerem; a roupa andava defendida e cuidada até às últimas. Luziam as coisas e quase não comiam para poupar, sobretudo ela que tudo guardava para o Gêbo e para a filha. Ó homem, mas então?, toda a gente se arranja e tu estás sempre na cepa torta! Deixa estar, mulher! As coisas não vão como tu pensas. Ora não vão, não vão!... Era ela afinal que o empurrava, àquele ser gordo e inútil. Fortalecia-o. Por vossa causa é que eu luto, dizia ele sempre. Não posso mais!
E não podia. Porque até o sonho mesquinho dos desgraçados se estanca, porque até aos desgraçados chega o momento em que não lhes é dado sonhar... Os pobres contentam-se com pouco, tudo lhes serve, qualquer fio lhes basta, e fazem esforços desesperados para o manterem vivo. Mas a desgraça seca, e o Gêbo, que não tinha imaginação, não podia sonhar; o que ele queria era dormir, dormir aniquilado, um sono profundo de morte. Os outros não lhe consentiam, debatiam-se ainda, e a velha teimava em resistir à desgraça, em iludir-se até à última, até cair por terra, exausta, exigindo-lhe todos os dias uma mentira para alimentar o seu sonho, teimando em defender até aos últimos restos de uma vida imaginária. Então?..., interrogava, cada vez mais ansiosa. Mas o Gêbo já não sabia. O Gêbo já não podia mentir. E a necessidade de inventar todos os dias tornava-se-lhe tão dolorosa, mais dolorosa ainda, do que a de pedir esmola. Aquele homem gordo, ao chegar a casa, procurava o dinheiro no bolso e algum resto de sonho para atirar à mulher alta, seca, nervosa, de olhos fixos nele: então? Então... Nada, nada... Mas mente! Ao menos dizia o silêncio, diziam os olhos ansiosos, dizia a atitude da mulher imobilizada diante daquele ser atarantado, cada vez mais grotesco, diante da desgraça cada vez mais próxima. Então, nada! Então só ele não percebia que ninguém pode viver neste mundo sem sonhar, e quanto mais pobres, mais necessário se torna juntarem-se e arquitectarem uma mentira, como friorentos à procura de lume!...
No seu caminho só encontra desgraçados e todos os desgraçados procuram iludir-se. O seu convívio é com seres quase tão grotescos como ele e que só se fartam de ilusão. Ela dá à tarde o Gêbo vai para uma loja conhecida onde se juntam os comerciantes falidos e os professores sem discípulos, desesperados por terem perdido tudo, menos a faculdade de sonhar. Um, a um canto, calado, com as mãos sobre o castão da bengala e o queixo apoiado nas mãos, escuta. Escuta ou sonha?... Outro fala sempre, maneja cifras como um prestidigitador, e está ao facto de todos os negócios que se fazem na praça. E há outro a quem o dinheiro não interessa. Já tem enriquecido e empobrecido umas poucas de vezes, sempre com a mesma indiferença e o mesmo casaco verde; o que o interessa são as empresas, os planos, as aventuras irrealizáveis. E aquele encostado ao balcão, magro e sereno, só intervém com palavras decisivas e todos se afastam dele: tem a especialidade de meter no fundo os negócios em que entra, por melhores que eles sejam. Todos trazem letras na algibeira, papéis que ninguém desconta, combinações esplêndidas para enriquecer. E falam muito, enganam-se uns aos outros, não por mentirem, mas para tornarem mais visível a sua aspiração, o sonho escondido e inútil. Só o Gêbo não pode mais e olha-os num mudo espanto. Oh, como eu sou feliz!..., exclamava um deles. Agora tenho aí um lugar... Nem sequer o escutavam e, se um saía, diziam os outros: cuido que está cada vez pior. Um homem que teve um crédito na praça! Tem a fome à porta. Coitado! Eu agora é que trago entre as mãos um negócio... Vivem iludidos e tombam no sepulcro gastos e com a cisma em maravilhosos lucros. E não têm porventura razão? Não vão a amanhã quinhoar dessa larga e misteriosa empresa, a Morte?» In Iba Mendes, Contos Portugueses, I volume, Livro 239, Projecto Livro Livre, Raul Brandão, 2014, Poeteiro Editor Digital.

Cortesia de PoeteiroED/JDACT