domingo, 18 de setembro de 2016

Erotismo Queirosiano. Ana Luísa Vilela. «A quase totalidade da produção não-ficcional de Eça de Queirós, no início da sua actividade literária, materializou-se na sua colaboração n’ O Distrito de Évora»


jdact e wikipedia

A Construção Ideológica
«Da vasta publicação não-ficcional de Eça de Queirós pode emergir, dialogando com a obra romanesca, a construção simbólica de um imaginário erótico. Essa construção é veiculada pela abordagem de uma série temática, de motivação fortemente afectiva, que pode constituir um conglomerado de motivos e uma enunciação de princípios valorativos que terão um elevado poder estruturante, tanto na ficção como no discurso não-ficcional. Constituíram o material de análise os textos deliberadamente não ficcionais publicados na Imprensa, como as crónicas jornalísticas ou os prefácios, ou os textos não publicados pelo autor, como as cartas, recolhidas e publicadas sem a sua presença. Se a motivação jornalística é real em grande parte dos textos, o certo é que, na sua ampla diversidade, todos os textos analisados possuem uma mesma e singular condição de enunciação: a do lugar de mediação e interferência entre as instâncias disjuntas do homem e do autor, do escritor e do leitor. O registo não-ficcional queirosiano traduz, pois, nos seus diferentes modos, o fluente devir de uma subjectividade enunciativa, profunda e ostensivamente comprometida. Assim, a fixação e encadeamento de uma simbólica do eros nestes textos, que actualizam as transformações figurativas e retóricas da subjectividade, poderá mostrá-los, igualmente, como uma reorganização sintagmática de estados de alma, a tradução movente da competência passional de um sujeito enunciador. Também por isso, a análise destes textos integra uma geral indagação do processo queirosiano de enunciar o desejo.
Deste vasto conjunto textual, destacam-se, desde a década de 67, pela sua recorrência e global coerência, dois conjuntos temáticos cuja unicidade simbólica tentarei elucidar: a representação da figura feminina, caracterizada por uma saturação mítica e por uma central dissociação; e a representação da decadência, caracterizada pela perda de um sentido original, pela perturbação de uma ordem e pela aniquilação do vigor consciente. Ambos os conjuntos mantêm cingidas relações entre si e com a crítica literária e social; a desordem feminina e a decadência são as figuras em que, de forma sistemática, se encarna o investimento dos valores, quer estéticos, quer ideológicos. A quase totalidade da produção não-ficcional de Eça de Queirós, no início da sua actividade literária, materializou-se na sua colaboração n’ O Distrito de Évora, jornal de que foi, entre Janeiro e Agosto de 1867, director e principal redactor. Da variada temática desta sua extensa colaboração avulta, e talvez  predomine, o discurso do moralismo social, em que é insistente a referência reprobatória à prostituição e à obscenidade.
Integram a preocupação morigeradora três outros veios temáticos: a representação sarcástica das mulheres, a crítica à decadência literária e a rejeição da vida moderna. De facto, este último constitui o tema englobante e como que explicativo, contextual. Assim, prevalece desde logo uma aguda consciência da decadência que caracteriza o tempo presente. A leitura de Cheiros de Paris, de Louis Veuillot (simultânea aliás à de Taine e à de Victor Hugo) é talvez o ponto de partida factual para a sistemática representação da actualidade cultural como uma época crepuscular e degenerescente. Já presentes nesta época, a artificialidade da cultura urbana e o seu afastamento em relação à Natureza consubstanciam, neste momento, uma fusão curiosa de reflexões e leituras: o romantismo de Heine e Hugo, o áspero e apocalíptico catolicismo de Veuillot, o sentimento de indigenato e a aguda observação de Taine em Voyage en Italie. Será particularmente marcante a imagem de Paris, tipificação da vertiginosa e decadente cidade-civilização, à qual se opõe a doce, indolente e voluptuosa vida meridional. Assim, a representação de Lisboa recupera traços da vã agitação do Paris de Veuillot e traços da preguiça da Nápoles de Taine. A crítica literária constitui outro domínio íntima e explicitamente associado ao moralismo social. Um mesmo quadro da decadência, de que a literatura é um dos mais efectivos sintomas, integra tanto a banal e amaneirada literatura romântica como a literatura exclusivamente retórica de Mallarmé, de Baudelaire, Leconte de l’Isle, Catulle Mendès.
O sexo mercantil, a emancipação feminina, a desagregação dos valores matrimoniais (amor livre), o rebuscamento formal e a consagração literária da paixão ilícita constituem pois, desde 1867, motivos da representação da decadência, integrando uma série simbólica caracterizada pela inversão e artificialidade: isto é, pela perda. Inquieto e ressentido, o discurso da perda processa duas noções básicas: a noção de que o curso da História está inflectido por uma falsificação, uma perversão irremediável; e a noção da aproxima­ção assimptótica de uma catástrofe - que está sempre iminente, mas nunca mais chega: “Hoje em quase toda a Europa se dá o mesmo: na véspera de grandes factos sociais, de terríveis transformações, por toda a parte, na França, na Espanha, na Inglaterra, em Portugal, a literatura decai.
Enquanto a desejada catástrofe não chega, e Eça encenou, por várias maneiras, a sua chegada, a representação do presente enquanto véspera da catástrofe caracteriza-se pelas figuras da estagnação e do torpor que, sempre de uma forma ou de outra associado à languidez e à lascívia, atravessando como um leit-motiv toda a ficção queirosiana, está no Distrito de Évora já plenamente configurada. A reflexão sobre esse vazio interior abre de resto caminho à representação deliciada da influência do clima meridional, a qual, muito provavelmente, terá encontrado uma impressiva sugestão em Taine e nas suas descrições da indolência sensual dos lazzaroni napolitanos». In Ana Luísa Vilela, Erotismo Queirosiano, Universidade de Évora, ContraNatura, Wikipedia.

Cortesia de ConttaNatura/Wikipedia/JDACT