sábado, 17 de setembro de 2016

Herege. Ayaan Hirsi Ali. «Devo odiar o cientista que descobriu a cura da malária? Devo ensinar minha filha a odiar pessoas apenas porque a religião delas é diferente? Por que transformamos nossa religião em uma religião de ódio…»

jdact e wikipedia

«(…) Voltarei a tratar desse grupo negligenciado e, em grande medida, desconhecido. Por ora, basta dizer que escolhi identificar-me com os dissidentes. Aos olhos dos muçulmanos de Medina, somos todos hereges, pois tivemos a temeridade de questionar a aplicabilidade de ensinamentos do século VII ao mundo do século XXI. Entre os dissidentes incluem-se pessoas como Abd Al-Hamid Al-Ansari, ex-decano de direito slâmico da Universidade do Catar, que condenou o ódio às religiões não islâmicas. Ele citou na íntegra uma mulher saudita que indagou por que sua filha devia ser ensinada a odiar não muçulmanos: eles querem que eu odeie o cientista judeu que descobriu a insulina, que uso para tratar minha mãe? Devo ensinar minha filha que ela tem de odiar Edison, o inventor da lâmpada elétrica que ilumina o mundo islâmico? Devo odiar o cientista que descobriu a cura da malária? Devo ensinar minha filha a odiar pessoas apenas porque a religião delas é diferente? Por que transformamos nossa religião em uma religião de ódio contra quem difere de nós? Al-Ansari cita então a resposta de um eminente clérigo saudita: isso não é da sua conta e a cooperação com os infiéis é permitida, mas só como recompensa por serviços, e não por amor. Al-Ansari propõe tornar o discurso religioso mais humano. E é precisamente nisso que reformistas residentes no Ocidente, como Irshad Manji, Maajid Nawaz e Zuhdi Jasser, se empenham. Eles têm em comum a tentativa de modificar, adaptar e reinterpretar a prática islâmica a fim de tornar o discurso religioso mais humano.
Quantos muçulmanos pertencem a cada grupo? Mesmo se fosse possível responder decisivamente essa questão, não sei se isso tem importância. No rádio e televisão, na comunicação social, em muitíssimas mesquitas e, obviamente, no campo de batalha, os muçulmanos de Medina chamam a atenção do mundo. Mais perturbador é o crescimento abrupto do número de jihadistas muçulmanos nascidos no Ocidente. Uma estimativa da ONU em Novembro de 2014 diz que cerca de 15 mil combatentes estrangeiros de no mínimo oitenta países viajaram para a Síria para se juntar aos jihadistas radicais. Mais ou menos um quarto deles provém da Europa Ocidental. E não são apenas homens jovens. De 10% a 15% dos oriundos de alguns países ocidentais que viajaram para a Síria são mulheres, segundo estimativas do grupo de pesquisa ICRS. Há estatísticas ainda mais preocupantes. Segundo estimativas do Pew Research Center, as projecções mostram que a população muçulmana dos Estados Unidos crescerá de aproximadamente 2,6 milhões actuais para 6,2 milhões em 2030, principalmente em consequência de imigração e de fecundidade acima da média. Embora em termos relativos isso venha a representar menos de 2% da população norte-americana total (1,7% para ser mais exacta, em comparação com cerca de 0,8% hoje), em termos absolutos essa população será mais numerosa que a de qualquer país da Europa Ocidental com excepção da França. Sendo imigrante de origem somali, não tenho objecção alguma a que milhões de outras pessoas do mundo muçulmano venham para os Estados Unidos em busca de uma vida melhor para si mesmas e suas famílias. O que me preocupa são as atitudes que muitos desses novos muçulmano-americanos trarão consigo. Aproximadamente dois quintos dos imigrantes muçulmanos entre hoje e 2030 provirão de apenas três países: Paquistão, Bangladesh e Iraque. Outro estudo do Pew, sobre a opinião no mundo muçulmano, mostra quantas pessoas nesses países têm ideias que a maioria dos ocidentais consideraria extremistas. Três quartos dos paquistaneses e mais de dois quintos dos bengaleses e iraquianos pensam que as pessoas que deixam o islão merecem a pena de morte. Mais de 80% dos paquistaneses e dois terços dos bengaleses e iraquianos acham que a lei da sharia é a palavra de Deus revelada. Proporções semelhantes dizem que o entretenimento ocidental fere a moralidade. Só minúsculas fracções dessa população não se incomodariam caso suas filhas se casassem com cristãos. Apenas uma minoria considera que matar mulheres nunca se justifica por motivo de honra. Um quarto dos bengaleses e um dentre oito paquistaneses acha que as explosões suicidas em defesa do islão são frequentemente ou às vezes justificadas». In Ayaan Hirsi Ali, Herege, tradução de Laura Motta e Jussara Simões, Editora Schwarcz, Companhia das Letras, 2015, ISBN 978-854-380-373-9.

Cortesia de ESchwarcz/CLetras/JDACT