domingo, 18 de setembro de 2016

Os Versículos Satânicos. Salman Rushdie. «A cadeira de rodas ficou vazia no meio dos estúdios silenciosos; sua ausência revelando o mau gosto da artificialidade dos cenários; de um a quatro, inventaram desculpas para a ausência da estrela»

jdact e wikipedia

«A reencarnação sempre foi um assunto importante para Gibreel, durante quinze anos o maior astro da história do cinema indiano, mesmo antes de derrotar miraculosamente o Vírus Fantasma que todo mundo começara a acreditar que ia pôr um fim em seus contratos. Alguém, portanto, devia ter sido capaz de prever, só que ninguém previu, que quando ele se levantasse e voltasse à activa conseguiria por assim dizer transformar em sucesso o fracasso dos germes e abandonar para sempre sua velha vida, uma semana depois de seu quadragésimo aniversário, desaparecendo, puf!, como num truque, sumindo no nada. Os primeiros a notar sua ausência foram os quatro membros da equipa de sua cadeira de rodas no estúdio de cinema. Muito antes da doença, ele tinha adquirido o hábito de ser transportado de cenário para cenário, no grande estúdio de DW Rama, por esse grupo de velozes e confiáveis atletas, porque um homem que chega a fazer onze filmes simultâneos precisa preservar suas energias. Guiados por um complexo código de traços, círculos e pontos que Gibreel recordava de sua infância passada entre os famosos entregadores de almoço de Bombaim, os homens da cadeira de rodas o transportavam de personagem para personagem, entregando-o pontualmente e sem erro, da mesma forma que seu pai costumava entregar almoços. E, depois de cada tomada, Gibreel voltava para a cadeira e era empurrado em alta velocidade até ao próximo cenário, para receber novos figurinos, nova maquilhagem e novas falas. Uma carreira no cinema falado de Bombaim, ele dizia à sua leal equipa, parece mais uma corrida de cadeira de rodas com uma-duas paradas no box durante o trajecto. Depois da doença, do Germe Fantasma, da Moléstia Misteriosa, do Vírus, voltou ao trabalho, cuidando-se mais, só sete filmes de cada vez..., e então, sem mais nem menos, não estava mais lã. A cadeira de rodas ficou vazia no meio dos estúdios silenciosos; sua ausência revelando o mau gosto da artificialidade dos cenários. Os empurradores da cadeira de rodas, de um a quatro, inventaram desculpas para a ausência da estrela quando os executivos cinematográficos caíram em fúria sobre eles: Ji, deve estar doente, sempre foi famoso pela pontualidade, não, por que a crítica?, maharaj, grandes artistas têm o direito de ser temperamentais de vez em quando, na, e por causa desses argumentos transformaram-se nas primeiras vítimas do inexplicável passe de mágica de Farishta, sendo despedidos, quatro três dois um, ekdumjaldi, chutados para fora dos portões do estúdio, de forma que uma cadeira de rodas ficou abandonada, juntando poeira debaixo dos coqueiros pintados em torno de uma praia de serragem de madeira. Onde estava Gibreel? Os produtores cinematográficos, deixados sete vezes na mão, entraram em custoso pânico. Está vendo, ali, o campo de golfe do Willingdon Club?, só nove buracos hoje em dia, os arranha-céus brotaram dos outros nove como gigantescas ervas daninhas, ou, digamos, como lápides marcando o local onde jaz o corpo esquartejado da cidade velha, ali, bem ali, executivos de alto-escalão, errando até as tacadas mais simples; e, olhe para cima, tufos de cabelos angustiados, arrancados de cabeças importantes, esvoaçando das janelas dos níveis superiores. A agitação dos produtores era fácil de entender, porque naqueles dias de plateias declinantes e da criação de novelas históricas e donas de casa contemporâneas batalhando na rede de televisão, havia um único nome que, colocado acima do título do filme, podia ainda ser um tiro certo, uma garantia cem por cento de um ultra-triunfo, de um super sucesso, e o dono do citado nome tinha partido, para cima, para baixo ou para o lado, mas seguramente e inquestionavelmente tinha se escafedido... Por toda a cidade, depois que telefones, motociclistas, policiais, homens rãs e dragas raspando o fundo da baía em busca de seu corpo trabalharam exaustivamente, mas sem sucesso, epitáfios começaram a ser pronunciados em memória do astro que se tinha apagado. Num dos sete impotentes cenários do Rama Studios, miss Pimple Billimoria, a última deusa apimentada, ela não é nenhuma senhorita frívola e falante, é uma explosão de dinamite, sim senhor, desvestida com os véus de uma dançarina do templo e posicionada debaixo das contorcidas representações em papelão de figuras tântricas copulantes do período Chandela, e percebendo que a sua grande cena não aconteceria, que sua grande chance se espatifara, apresentou suas desdenhosas despedidas a uma plateia de operadores de som e electricistas que fumavam seus cínicos bidis. Assistida por uma ayah tonta de tristeza, toda atrapalhada, Pimple tentou o desprezo. Meu Deus, que sorte!, disse. Pois hoje era a cena de amor, chhi chhi, e eu estava desesperada pensando como ia aguentar aquela boca com aquele hálito de merda de barata podre». In Salman Rushdie, Os Versículos Satânicos, 1989, Publicações dom Quixote, 2001, colecção Ficção Universal, ISBN: 978-972-200-746-7

Cortesia PdQuixote/JDACT