domingo, 23 de outubro de 2016

Cister. Os Documentos Primitivos. Aires Nascimento. «Mas, em contraste com a orgânica monárquica de Cluni, a função do Abade é apoiada e corrigida pelo Capítulo Geral de realização anual»

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«(…) Estrutura feudálica na organização monástica em concordância com a mentalidade do tempo; apoio concedido pelos poderes constituídos, de papas e príncipes (que escolhem as abadias cistercienses para sua sepultura), mas também de bispos e clero secular (pois o mosteiro cisterciense não oferece concorrência quer no temporal quer no espiritual e permite captar apoios na própria rede de relações que estabelece pela Europa inteira, tanto no plano espiritual como no civil); aproveitamento racionalizador dos meios materiais (domínio da natureza, aproveitamento dos recursos hídricos, organização das granjas, exploração e transformação dos produtos, emprego de mão de obra minimamente habilitada e enquadrada, intervenção nos mercados através de entrepostos, investimentos calculados). Enfim, por muito que se multipliquem as explicações, ou justamente porque elas dependem da perspectiva escolhida, não se pode ter em menos conta a sinceridade interior dos monges e a clarividência dos orientadores, individualmente ou em grupo, para responderem a uma autêntica multidão de homens, que não eram os menos válidos do meio de onde procediam. Não bastava, o desejo de fidelidade estrita à Regra de S. Bento, era necessária a clarividência exercida nos momentos oportunos e através das instituições e dos mecanismos de relação oportunamente criados. Mas a clarividência assentava também na planificação de uma estrutura interna, a um tempo funcional e simples, em que se conjugava a organicidade hierárquica com a participação das diversas unidades monásticas na vigilância pela adequação de um projecto de base às situações concretas.
A comunidade cisterciense era composta de pessoas várias, segundo uma escala relativamente larga: monges professos clérigos, não necessariamente com ordens, mas conhecedores das letras e com cultura para assumirem as funções de orientação; monges leigos, que normalmente não sabem ler, ainda que não faltem excepções de relevo (por exemplo, Alano de Lille) e habitualmente se confundem com os conversos, pois entram nessa categoria; noviços, em formação durante um período inicial que não ultrapassa um ano; conversos, leigos particularmente afectos aos serviços braçais, que vivem habitualmente nas granjas e celebram domingos e festas no mosteiro; doentes, por doença passageira ou crónica; domésticos ou familiares, homens e mulheres ligados ao mosteiro e nele trabalham, beneficiando dos seus sufrágios, em vida e em morte. Ao mosteiro acudiam também de forma passageira, outras pessoas, cuja presença é regulamentada: abades de outras comunidades, nomeadamente o abade-pai; hóspedes; peregrinos; assalariados sazonais; autoridades eclesiásticas e seculares. A coordenar toda essa comunidade humana estava o Abade, com os seus auxiliares, o prior e os encarregados das diferentes funções comunitárias.
Mas, em contraste com a orgânica monárquica de Cluni, a função do Abade é apoiada e corrigida pelo Capítulo Geral de realização anual. Semelhante figura aparece em funcionamento quando se multiplicam as fundações cistercienses. Falta-nos saber se tal instância funcionou nos primeiros tempos da vida em Cister como modo de regulação da vida em caridade e unanimidade e se foi a partir dessa experiência que se abrangeu as fundações que foram sendo criadas por solidariedade entre todos ou se foi o alargamento que fez surgir semelhante modo de proceder. O facto é que o Capítulo Geral, juntamente com a Visita anual se converteram em instâncias fundamentais de legislação e controlo da acção cisterciense. A expansão cisterciense faz-se por diferentes modelos: enxameação, caso em que uma comunidade envia um grupo de monges fazer uma fundação num território oferecido por um senhor; substituição, quando o grupo cisterciense toma o lugar de outra comunidade que desaparece; filiação ou agregação, e integração de uma anterior comunidade, que permanece sob a nova obediência; tutela, relativamente aos mosteiros femininos, cuja primeira filiação data de 1125, e cuja assistência fica entregue à vigilância do abade do mosteiro mais próximo. Nestas condições (e a expansão mantém-se até, meados do século XIII, tempo em que o renovamento espiritual e a resposta a necessidades novas são tomados pelas Ordens Mendicantes), a salvaguarda da identidade primitiva só pôde manter-se graças a um espírito previdente e organizador, não obstante os momentos de tensão ou de crise». In Aires Nascimento, Cister, Introdução, tradução e notas, Edições Colibri, Faculdade de Letras, Lisboa, 1999, ISBN 972-772-032-3.

Cortesia de Colibri/JDACT