sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Os Pecados da Rainha Santa Isabel. António Cândido Franco. «Uma personagem como Isabel de Aragão, cuja complexidade leva ao drama poético, como aquele que António Patrício nos deu, é sempre ela e os ascendentes»

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«(…) Por isso em última visão os santos não são da Igreja que os canonizou. Que fraude um santo de mãos postas, olhos seráficos, no recato dum altar! Que burla um santo de marfinite! Os santos são do mundo, e até do imundo, onde viveram, gritaram, erraram e arrastaram todas as infinitas sinuosidades, todas as dores naturais da sua contraditória santidade. Por esse motivo a santidade de Isabel de Aragão interessa-me muito, ainda que à revelia da Igreja. Só conheço dois interesses num santo de calendário romano: ou para lhe tirar a máscara de marfinite ou para lhe conhecer os pecados. No caso da nossa rainha santa dou de barato a marfinite e quero os pecados. São verdadeiros! São belos! São cintilantes! Chegam para emocionar e para dar vida à vida! Convido a visitar a vida de Isabel de Aragão e a descobrir os seus pecados, que brilham no fundo da noite como estrelas diamantinas. Esta mulher, que viveu há mais de setecentos anos, não morreu e continua viva. Sei onde ela mora e tenho carta branca para lhe bater à porta; não se amua ela com a minha visita e nunca me deixou esquecido ao postigo. Tal como outrora testemunhei o amor de Inês e Pedro, ou mais tarde testei a paixão de Fernando e Leonor, assisto agora à ligação de Dinis e Isabel. Não lhe prometo brevidade, que na casa onde a rainha nos recebe, roca à cinta, há muita volta para dar, mas obrigo-me a passada curta, ar sempre fresco e boa conversa. Não se queixe, que passeio assim é vida de ripanço.

A cruzada do Opróbio
Este livro é sobre Isabel de Aragão. É uma, giganta, cujas raízes se estendem por muitas figuras e acontecimentos anteriores. Uma personagem como Isabel de Aragão, cuja complexidade leva ao drama poético, como aquele que António Patrício nos deu, é sempre ela e os ascendentes. Convenço-me que o falhanço dos trabalhos que se escrevem sobre Isabel de Aragão se deve a esse facto. Nenhum está disposto a assumir a genealogia da princesa aragonesa, dela tirando consequências de monta para a pintura da personagem. Apresentam-nos por isso uma Isabel solitária, produto de ditames estranhos ao meio e formação. O resultado é em geral uma Isabel inverosímil, insignificante, ridícula, postiça, tirada por uma cartilha de convenções tão artificiais como pósteras. Uma vantagem tenho pois por certa na abertura deste passeio: não basta o quadro particular; é preciso o políptico familiar. Em vez do retrato local e português, é indispensável o mural ibérico, com extensões para a Sicília, onde a mãe de Isabel se formou, e alcançando a Hungria longínqua, donde veio a avó paterna. Não se assuste com tanta terra! Para modelar a vida duma santa não há com certeza Terra que chegue.
Isabel de Aragão, como personagem, é mais do que um fio solitário; é uma síntese, uma tessitura de muitas e variadas fibras. Sem antepassados, sem gerações anteriores, sem ribeiros desencontrados, convergindo de muitos lados, fica a faltar a raiz a uma personagem como Isabel; vive asfixiada, sem os braços subterrâneos que sugam no húmus o suco nutriente. Sem ascendentes ela está condenada a definhar e morrer. Por esse motivo não é possível um livro sobre Isabel de Aragão sem um vasto intróito, tocando os antepassados. Sem eles, nada podemos entender da figura que nos interessa. Não há volta a dar. Insuflar vida aceitável na sexta rainha de Portugal passa em primeiro lugar por entender as raízes que lhe deram vida. Até os pecados desta mulher como santa da Igreja romana, começaram muito antes dela nascer. Caso deixássemos de lado a história dos antepassados, perdíamos alguns dos desvios de maior surpresa ou nunca teríamos deles larga compreensão. São uma herança que ela recebe e a seu modo actualiza, sobretudo na acção que teve como rainha portuguesa, já longe de Aragão. Dar os acontecimentos que se seguem e que dizem respeito aos avós dos avós de Isabel de Aragão. Quando Raimundo Berengário, conde da Catalunha, casou com Petronilha, herdeira de Aragão, o poder da confederação aragonesa-catalã reforçou-se muito. Os interesses da nova união corriam em finais do século XII por quase todos os condados de além-Pirenéus, cujos senhorios cabiam em parte ao rei de Aragão. Assim, quando os barões do rei de França, respaldados numa ordem de cruzada lançada pelo papa Inocêncio III contra os cátaros heréticos, se atiraram sem freio, à testa de quinhentos mil homens, à conquista das províncias meridionais, o rei de Aragão, Pedro II, o neto de Raimundo Berengário, desgostou-se com a estratégia papal e o amparo do rei de França. Que direito tem esse Lotário, senhor de Segni, de vir meter nos fojos da nossa terra os gardingos da Normandia, exclamou ele, mais enfadado que quezilento, quando tomou nota da chegada dos barões do rei francês, à linha de Poitiers». In António Cândido Franco, Os Pecados da Rainha Santa Isabel, Ésquilo, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-809-289-2.

Cortesia de Ésquilo/JDACT