domingo, 1 de janeiro de 2017

Deslumbrante. Madeline Hunter. «Despiu a capa azul e a peliça que trazia por baixo e pendurou-as no gancho para secar. Tirou a touca e sacudiu-a»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Uma mulher independente é uma mulher desprotegida. Audrianna nunca compreendera tão bem a primeira lição que a sua prima lhe ensinara como naquele dia. Uma mulher independente era também uma mulher de respeitabilidade duvidosa. A sua entrada no Duas Espadas, uma estalagem à saída de Brighton, atraiu mais atenções do que qualquer mulher decente desejaria. Sentiu-se examinada da cabeça aos pés. Vários homens observaram o seu percurso solitário até ao outro lado da sala de estar com descarado interesse; o tipo de homens aos quais ela nunca se vira exposta. As certezas patentes naqueles olhares deixaram-na ainda mais apreensiva. Embarcara naquela viagem cheia de justa determinação. O brilho do sol e a temperatura inusitadamente amena para o final de Janeiro lhe pareceram a forma de a Providência favorecer a sua grande missão. A Providência revelara-se caprichosa. Uma hora depois de sair de Londres surgira o vento, a chuva e o frio crescente, fazendo-a se arrepender amargamente de ter escolhido um lugar no tejadilho da carruagem. Agora estava encharcada pelas horas que passara na chuva gelada, e, no mínimo, um tanto irritada. Recuperou a compostura e procurou o estalajadeiro. Pediu um quarto para passar a noite. Ele observou-a longa e duramente, depois olhou ao redor, à procura do homem que a tinha perdido. O seu marido ainda está no estábulo? Não, estou só. A pele branca e fina do rosto envelhecido do homem enrugou-se numa expressão desconfiada. A boca contorceu-se de cinco maneiras diferentes enquanto procedia com um novo exame. Tenho um quarto pequeno com que pode ficar, mas dá para o pátio do estábulo. O seu tom relutante deixava claro que a alojava a contragosto. Uma mulher independente também fica com o pior quarto da estalagem, ao que parecia. Serve, se estiver seco e quente. Venha comigo, então. O estalajadeiro levou-a para um quarto no segundo andar, ao fundo. Avivou o fogo, mas não muito. Ela reparou que a quantidade de combustível não era o suficiente para aquecer o quarto muito mais e durar a noite toda. Vou precisar que me adiante a primeira noite. Audrianna não se mostrou insultada. Enfiou a mão na bolsa e tirou três xelins. Seria mais do que suficiente para uma noite, mas ela pôs tudo na mão do homem. Se chegar alguém fazendo perguntas sobre Mr. Kelmsley, envie-a para cá mas não diga nada sobre a minha presença nem sobre mim. O pedido fez o homem franzir ainda mais a testa, mas as moedas que tinha na mão mantiveram-no em silêncio. Foi embora com os xelins e ela presumiu que tinham chegado a um acordo. Só esperava que os frutos da sua missão compensassem a facada na sua reputação. Reparou no dinheiro que restava na bolsa. De manhã a maior parte estaria gasta. Só estaria ausente de Londres durante dois dias, mas a viagem consumiria as poupanças que ela juntara com todas aquelas aulas de música. Teria de aguentar meses de escalas desajeitadas e moças chorosas para repor a lição. Tirou um pedaço de papel da bolsa. Aproximou-o da luz do fogo apesar de saber as palavras de cor: o dominó solicita mr. Kelmsley a se encontrar com ele no Duas Espadas em Brighton daqui a duas noites, para discutir um assunto de interesse mútuo.
Fora pura sorte ela ter sequer sabido que tinham posto o anúncio no Times. Se a sua amiga Lizzie não passasse a pente fino aqueles anúncios todos, em todos os jornais e revistas de notícias disponíveis, poderia ter escapado ao olhar de Audrianna. O apelido não estava bem escrito, mas ela tinha a certeza de que o Mr. Kelmsley a que se referia era o seu pai, Horatio Kelmsleigh. A pessoa que queria encontrar-se com ele não sabia, seguramente, que ele tinha morrido. Imagens do pai invadiram a sua mente. Sentiu o coração se apertando e os olhos queimando como acontecia sempre que as memórias tomavam conta dela. Viu-o brincando com ela no jardim e assumindo a culpa quando a mãe brigava por causa dos seus sapatos sujos. Evocou uma recordação distante, difusa, provavelmente a mais antiga que tinha dele. O pai trajava o uniforme do exército, pois isso fora antes de vender a patente, quando Sarah nasceu, e de assumir um cargo no Gabinete do Material de Guerra, que superintendia a produção de munições durante a guerra. Em geral, porém, o que via era o rosto triste e perturbado daqueles últimos meses em que ele se tornou objecto de tanto desprezo. Guardou o anúncio, que a fazia recordar o motivo da sua presença ali. Nada mais importava realmente, nem a chuva, nem os olhares, nem a antipatia. Com sorte, iria ser comprovado que ela tinha razão em pensar que o Dominó possuía a informação que teria ajudado o pai a recuperar o bom nome. Despiu a capa azul e a peliça que trazia por baixo e pendurou-as no gancho para secar. Tirou a touca e sacudiu-a. Em seguida, colocou o único candeeiro do quarto em cima da mesa ao lado da porta e a cadeira na sombra, no canto oposto, atrás da lareira. Se sentasse ali, conseguiria ver imediatamente quem entrasse, mas a pessoa não a veria muito bem de imediato. Pousou a mala em cima da cadeira e abriu-a. Veio à mente o resto da primeira lição de Daphne. Uma mulher independente é uma mulher desprotegida, por isso tem de aprender a proteger-se.
Então, enfiou a mão na mala e tirou a pistola que escondera por baixo das roupas. Lord Sebastian Summerhays entregou sua montaria a um criado encharcado. O rapaz entrou na longa fila que aguardava o atendimento dos funcionários da cavalariça do Duas Espadas. Sebastian entrou na sala comum da estalagem. Debaixo das vigas de madeira do tecto, amontoava-se uma amostra da diversidade humana. A chuva obrigara os cavaleiros a se refugiarem e as carruagens tinham sofrido atrasos. Mulheres e crianças ocupavam a maior parte das cadeiras e bancos enquanto os homens ficavam espalhados na sala, esperando a vez de chegarem perto da lareira para se secarem. Foi aí que Sebastian estacionou, deixando que os estragos do tempo escorressem por sua capa de montar. Sentia-se no ar o odor da lã húmida e corpos por lavar. Alguns criados se esforçavam para recompor chapéus de seda e toucas de tecido crepe, enquanto outros serviam comida cara e pouco apelativa. Sebastian dirigiu um olhar experiente ao mar de rostos, procurando algum que lhe parecesse suspeito, estrangeiro ou pelo menos tão curioso como ele. O nome de código do anúncio deixava-o igualmente irritado e intrigado. Dificultaria a sua missão, mas também significava que havia segredos envolvidos. O próprio anúncio, dirigido a Kelmsley, indicava que quem o escrevera não sabia que o homem estava morto há quase um ano. O que sugeria, por sua vez, que o Dominó não era de Londres, nem sequer da Inglaterra, talvez. O facto de o nome não estar correctamente escrito o fazia pensar que Dominó não seria um bom amigo nem um colega próximo de Horatio Kelmsleigh. Com sorte, ele nem sequer saberia como Kelmsleigh era. O suicídio de Kelmsleigh fora lamentável em muitos aspectos, um deles era ter fornecido uma explicação fácil demais para um mistério que, Sebastian estava convencido, possuía muito mais facetas. Naquela noite tinha esperança de descobrir se estava certo. Então, Summerhays? Não esperava vê-lo por aqui, neste refúgio decadente». In Madeline Hunter, Deslumbrante, Edições ASA, 2013, ISBN 978-989-232-372-5.

Cortesia de EASA/JDACT