terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Escombros. Elena Ferrante. «Elsa Morante resume livremente aquilo que a sua personagem, Giuditta, dirá ao filho, comentando os modos de siciliano que o rapaz usou para marcar o fim, depois de uma feia humilhação»

jdact

Papéis. 1991-2003
As costureiras das mães
«Cara Sandra.
Esta história do prémio está a perturbar-me muito. Devo dizer-te que aquilo que me faz mais confusão não é o meu livro ter sido premiado, mas o prémio ter o nome de Elsa Morante. A fim de escrever algumas linhas de agradecimento, que fossem acima de tudo uma respeitosa homenagem a uma escritora que muito amei. pus-me à procura, nos livros dela. de passagens adequadas à circunstância. Descobri que a ansiedade nos prega partidas desagradáveis. Folheei, folheei, e não encontrei uma única palavra que servisse para aquilo que pretendo, quando na realidade me recordava nitidamente de muitas. Será necessário reflectir sobre como e quando é que as palavras fogem dos livros, e os livros acabam por parecer túmulos vazios.
O que foi que me impediu de ver, neste caso? Procurava uma passagem claramente feminina sobre a figura materna, mas as vozes narradoras masculinas inventadas por Elsa Morante toldaram-me a vista. Sabia bem que essas passagens existiam, todavia, para encontrá-las teria de me inserir de novo na impressão causada pela primeira leitura, quando fora capaz de sentir as vozes masculinas como um disfarce de vozes e sentimentos femininos. Porém, para conseguir algo desse género, a pior coisa que se pode fazer é ler com a pressa de encontrar um passo para citar. Os livros são organismos complexos, as linhas que nos perturbaram profundamente constituem o momento mais intenso de um terramoto nosso, de leitores, que o texto iniciou desde as primeiras páginas; ou se encontra logo a falha geológica, e nos tornamos a própria falha, ou então já não encontramos as palavras que nos pareceram escritas para nós, e, se as encontrarmos, parecem-nos banais, não mais do que um lugar-comum.
Por fim recorri à citação que conhecem. queria usá-la como epígrafe em Um Estranho Amor: mas é difícil de usar, porque ao lê-la hoje parece, justamente, óbvia, nada mais que uma passagem irónica sobre a desmaterialização do corpo da mãe por acção do macho meridional. Por isso, caso vos pareça necessário citar aquele passo para tornar mais compreensível a leitura do meu texto de agradecimento, transcrevo abaixo a página por inteiro. Elsa Morante resume livremente aquilo que a sua personagem, Giuditta, dirá ao filho, comentando os modos de siciliano que o rapaz usou para marcar o fim, depois de uma feia humilhação, da experiência teatral da mãe, e o regresso dela a uma aparência menos perturbante: Giuditta agarrou-lhe uma mão e cobriu-a de beijos. Naquele momento (disse-lhe em seguida), ele tivera precisamente uma atitude de siciliano, daqueles sicilianos severos, honrados, sempre atentos às suas irmãs, para que não saiam sozinhas à noite, para que não alimentem esperanças aos apaixonados, para que não usem bâton! E, para os quais, mãe significa duas coisas: velha e santa. A cor apropriada para as roupas das mães é o preto, ou, quando muito, o cinzento e o castanho. Os seus vestidos são informes, pois ninguém, a começar pelas costureiras das mães, vai pensar que uma mãe tem um corpo de mulher. Quantos anos têm é um mistério sem importância, uma vez que a sua única idade é a velhice. Essa velhice informe tem olhos santos que choram, não por si mas pelos filhos; tem lábios santos que recitam orações, não por si mas pelos filhos. E ai daquele que pronuncie em vão, diante desses filhos, o santo nome das suas mães! Ai dele! É uma ofensa mortal!
Recomendo-vos que leiam este trecho sem ênfases. em voz normal, sem tentarem fazer os tons declamativos dos maus actores. Aquele que o ler deverá apenas sublinhar, ligeiramente, informes, costureiras das mães, corpo de mulher, mistério sem importância. E aqui vai também a minha carta para o júri do prémio, espero que se perceba que as palavras de Elsa Morante não estão de modo nenhum gastas. Peço-vos uma vez mais desculpa pelas maçadas que vos dou.
Elena

In Elena Ferrante, Escombros, 2003, Relógio d’Água Editores, 2016, ISBN 978-989-641-666-9.

Cortesia de Relógio d’AguaE/JDACT