segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Musa Praguejadora. Ana Miranda. «Os homens vão a cavalo, as mulheres e crianças, numa carroça, sentadas sobre pertences da família: ferramentas de trabalho, uns caixões com roupas e lençóis, uma viola, algumas trouxas»

Cortesia de wikipedia e jdact

A vida de Gregório Matos
«Pedro Gonçalves de Matos, viúvo de dona Margarida Álvares, é um ferreiro modesto, tem sua oficina junto ao mosteiro da Senhora da Oliveira, em Guimarães, onde nasceu e se casou. Sua vida é árdua, e ele sonha com a colónia ultramarina do Brasil, onde se diz que é terra para um pobre enriquecer. Pedro vê alguns de seus amigos partindo e, diante de cada dificuldade que precisa enfrentar, o seu devaneio se fortalece. Conversa no adro da igreja com amigos, alguns deles também sonham com o além-mar, são homens pobres, valorosos e corajosos, tradicionalmente aventureiros, todos têm algum parente, pai, filho, tio, primo, avô, ou amigo que partiu em busca de uma nova vida na colónia brasileira. Deixavam às vezes suas mães, esposas e filhas a esperar os cabedais que viriam da nova terra. Uns nunca mais deram notícias, outros retornaram, na mesma pobreza, mas a maioria, em condição superior. Alguns, até mesmo ricos. O Brasil precisa de oficiais mecânicos, ferreiros, pedreiros, carpinteiros, canteiros, oleiros, tanto mestres como aprendizes, lavradores e criadores, lá eles terão trabalho em abundância e muito mais bem pago do que no Reino. Pedro é ambicioso, quer enriquecer, e não vê essa possibilidade, nas aldeias pacatas e monótonas do Minho. Conversa com seus irmãos João e Domingos, que partilham da mesma aspiração. Um amigo que esteve no Brasil fala da colónia com ardor, da imensidão da costa com mais de oitocentas léguas, toda coberta de bosques. É uma terra áspera e bravia, mas a grande quantidade de açúcar que ali se fabrica dá meio de vida e enriquece; em apenas cento e cinquenta léguas há mais de quatrocentos engenhos, e os portugueses carregam seus navios de açúcares, não há lugar em todo o mundo onde se crie tanto açúcar com tanta abundância. Na costa há quantidade de cidades, fortalezas e belas casas nobres; entrando a trinta léguas pelo sertão, senhores ali possuem grandes territórios que lhes deu el-rei de Espanha em recompensa por algum serviço e são elevados, em título de dignidade, a barões ou condes, e esses senhores dão terras a quem quer ir morar nelas e plantar canas-de-açúcar, com a condição de mandarem moer aos seus moinhos pagando-lhes a tostão, e ali os colonos edificam suas casas com jardins e plantações de toda sorte de frutos, criam muito gado, aves e outros comestíveis, plantam arroz, milho grosso e miúdo, raízes de mandioca, batatas e mais sementes, os portugueses extraem do Brasil dinheiro, açúcar, conserva, bálsamo e tabaco, mas não mais pau-brasil, que el-rei reserva para si. Lá, uns ficam fidalgos e seus filhos nascem fidalgos. Diante de tantas oportunidades, os irmãos Matos decidem partir para o Brasil.
O filho de Pedro, o menino Gregório, trabalha no quintal a debulhar espigas de milho, quando o pai lhe comunica que vão para a colónia. É o ano de 1616, e a criança tem por volta de doze anos. O menino não teme as viagens pelo oceano, elas fazem parte das conversas, da imaginação, dos encantos da infância minhota. Os marujos são quase heróis, as naus, motivo de orgulho, e o mar, um fascinante espectáculo de novidades. Os irmãos Matos vendem e doam a parentes tudo o que não podem levar. Fazem uma festa de despedida, mandando celebrar missa e tomando uma canada de vinho com amigos e vizinhos. A expectativa é grande. Quase não dormem a noite de véspera da viagem, uns cheios de temores, outros de esperanças. Rezam piedosamente ao alvorecer. O menino está ansioso quando segue o pai, os tios, tias e primos a caminho de Viana do Castelo. Os homens vão a cavalo, as mulheres e crianças, numa carroça, sentadas sobre pertences da família: ferramentas de trabalho, uns caixões com roupas e lençóis, uma viola, algumas trouxas. Em Viana do Castelo aguardam a partida da nau que vai se juntar à frota, rumo ao Brasil. Enquanto esperam, Gregório, com seu primo, o menino João de Matinhos, assiste a uma estranha procissão onde aparece a figura da Morte recoberta de patas, cachos de uvas, ouro, de que jamais se esquecerá. Finalmente a família embarca e a nau levanta ferros, para cruzar os mares rumo ao Brasil. O oceano parece infinito. O Minho, a parte geográfica de Portugal ao extremo noroeste, no litoral, tinha como cidades mais importantes Braga, no Baixo Minho, e Viana do Castelo, no Alto Minho. Seus limites a norte e sul eram os rios Minho e Douro e a leste um perfil de montanhas o separava de Trás-os-Montes, formando uma espécie de ferradura aberta para o mar. Possuía vales largos e de chão plano, por onde corriam, além do Minho, os rios Lima, Cávado e Homem, e seus afluentes. Com tantas águas, era uma região húmida e fria, onde chovia bastante. Na terra, boa para criação e lavoura, havia pasto no Inverno e plantava-se milho no Verão. Também muito feijão, abóbora, e outras hortas. Videiras e oliveiras. E centeio e trigo. O rio Minho, a cujas margens estavam de um lado Portugal e de outro a Galiza, era como a alma da região. Ele determinava paisagens e a vida dos ribeirinhos, uma população com extremo amor pelo fabuloso e intensa devoção religiosa. Os minhotos se apegavam à terra, mas possuíam um instinto de arribação, uma história de migrações eternas, sofridas, e devaneavam, amantes das saudades. Tinham o rosto cavado pelo sol, pelo frio, ou pelas humidades salgadas do mar. Uma gente de feição mais para galega, que até no português parecia estar falando o galaico. O modo de falar do Alto Minho era uma variação do português setentrional, com alguns traços que o aproximavam do galego e no qual ocorriam características únicas, um fenómeno típico de lugares isolados. Havia alguns provérbios locais de intensa sonoridade poética, como este: casa quiero cánta caiba e binho cánto bieba e tierras cántas bieja. Existiam naquela região as peculiares aldeias fantasma. Na serra da Peneda os moradores, obrigados a sair de suas casas durante um período no ano, pelo rigor do frio, precisavam ter duas moradias: a inverneira, abrigo para quando a neve cobria a serra, e a casa branda, para os tempos mais amenos. Eram casas simples, de pedras postas umas sobre as outras e presas de modo rude, com engastes, manchadas de liquens, o telhado coberto de colmo. Na parte de baixo guardavam o gado, e na de cima ficavam a cozinha com o forno, e os quartos. Nas brandas os castrejos lavoravam batatas e centeio, e nas inverneiras apanhavam feijão e milho, ou ficavam em casa fiando, tecendo linho, lã. Em meio a isso, o capricho da Primavera, a melancolia mediana do Outono». In Ana Margarida, Musa Praguejadora, Editora Record, 2014, ISBN 978-850-106-602-2.

Cortesia de ERecord/JDACT