segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Musa Praguejadora. Ana Miranda. «… uma testemunha ocular da Bahia conta que todos os navios chegados do Porto e das ilhas atlânticas da Madeira e dos Açores traziam, pelo menos, oitenta camponeses para o Novo Mundo»

Cortesia de wikipedia e jdact

A vida de Gregório Matos
«(…) Os costumes daqueles aldeões eram singelos; trabalhavam de sol a sol, alongavam-se a conversar nos pátios das igrejas contando lendas e histórias sem fim, bebiam o vinho rústico diante da lareira, tomando uma malga de sopa e comendo uma broa feita na lenha, cuidavam das vindimas e desfolhadas, subiam os montes, iam espiar dentro dos castros, onde se imaginava que estavam escondidos antigos tesouros, e viviam intensamente a religiosidade cristã, com suas festas, missas, rezas, procissões. Meninos saltavam como cabritos por cima dos montes de folhelho, espantando galinhas. Mulheres giravam colheres nas imensas panelas fumegantes, lavavam roupas no rio, debulhavam e pilavam. O grande congraçamento social se dava nas festas religiosas, feiras e romarias, de origens antigas. Ali viveram celtas, romanos, mouros, judeus, suevos, visigodos, germânicos, que deixaram narizes e cabelos e lábios e temperamento e outros legados aos aldeões. Os minhotos guardavam na lembrança algumas lendas que revelavam algo de seu modo ingénuo e encantador de ver o mundo, como a de uma princesa cristã casada com um rei mouro, que fugia para o monte Abedim, levando sete bispos; o rei a sitiava, tentando vencê-la pela fome, mas a princesa era salva por uma águia que lhe levava trutas, no bico, e a princesa demovia seu esposo, mandando-lhe duas trutas que a águia lhe levara ao seu retiro. A sabedoria da natureza criada por Deus vem salvar o Cristianismo da prisão moura, pode ser um dos sentidos dessa lenda. Em Melgaço havia a lenda de Inês Negra, mulher que venceu num duelo a campeã das tropas inimigas. Monção era lugar de mulheres temerárias, que lutaram defendendo suas terras, firmes durante o longo tempo em que foram sitiadas por espanhóis ou por franceses. Em Gandra, onde havia muitos ratos porque se estocava milho, os aldeões acreditavam que, se não guardassem o dia de São Pedro de Rates, teriam as casas invadidas pelos roedores. Novamente a natureza se relaciona com o cristianismo e a devoção, revelando uma visão religiosa em que o divino tem plena influência sobre o quotidiano. Outra lenda, passada no século 138 a.C., em que o Lima seria o rio do esquecimento, era uma repetição do mito do Letes, relacionado aos sentimentos de abandono da terra natal. Quem atravessasse aquele rio perderia a memória.
A família Matos deixou as terras do Minho, embarcando em Viana do Castelo, de onde haviam saído soldados e marinheiros para campanhas de África, para a povoação dos Açores e para a saga das grandes descobertas. Os migrantes, excepto degredados, costumavam viajar em grupos familiares, cientes de que era bem mais difícil para alguém sozinho vencer uma terra desconhecida. Não sabemos exactamente o que levava cada família a imigrar para a colónia, mas a Bahia representava uma possibilidade de enriquecimento; eram muito comuns os casos de gente tangida pela pobreza ou pela ambição, com espírito de aventura, embora alguns viessem ao Brasil para ocupar cargos ultramarinos, realizar negócios, fugir a alguma perseguição, para cumprir pena, ou com a ideia de se estabelecer no comércio. Portugal não tem outra região mais fértil, mais próxima, nem mais frequentada, bem como não encontram seus vassalos melhor e mais seguro refúgio do que no Brasil. O português atingido por qualquer infortúnio para lá emigra. Também havia a crença de ser o Brasil uma terra que dava condições de longevidade, e era frequente virem senhores idosos, ou com saúde debilitada, condenados a poucos anos de vida, que aqui chegando se tomavam de vigor, vivendo mais vinte ou trinta anos. E avultavam as figuras heróicas que tomavam navios e partiam, admiráveis navegadores, fidalgos que atravessavam terras e mares para lutar, mercadores lendários que corriam desertos, reis viajantes; toda uma mitologia de aventuras pelo mundo desconhecido dignificava e cobria de nobreza o acto de partir. Apesar da ideia de ser o Brasil uma terra de degredo, para onde se enviavam os indesejados, os condenados, a ralé, os portugueses sabiam que aqui se instalava uma sociedade mais aberta e permeável, com grandes possibilidades de arranjos e maior liberdade, sem a vizinhança das instituições repressoras. A imigração vinda de Portugal no século XVII era intensa. … uma testemunha ocular da Bahia conta que todos os navios chegados do Porto e das ilhas atlânticas da Madeira e dos Açores traziam, pelo menos, oitenta camponeses para o Novo Mundo. Dez anos mais tarde [1680], um escritor anónimo, possuidor de ampla experiência quanto ao Brasil, assegurava que todos os anos, aproximadamente dois mil homens provenientes de Viana, Porto e Lisboa, emigravam para Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro. As mulheres brancas não emigravam na mesma proporção, mas, fosse como fosse, maior foi o número das que fizeram aquela curta e segura travessia com seus homens do que o das que se aventuraram aos longos e perigosos seis meses de viagem para a Índia.
Embora não haja estatísticas acerca dessa emigração, há indícios seguros de que a maioria dos emigrantes vinha de províncias do Entre-Douro-e-Minho, de Lisboa, e das ilhas da Madeira e dos Açores. No Minho, região coberta de plantios, não havia terra suficiente para a densa população. Alguns chegavam ao Brasil para trabalhar na lavoura como pequenos proprietários de terras, outros como oficiais mecânicos, carpinteiros, pedreiros, ferreiros; mas todos estes, assim como os lavradores, logo que podiam compravam africanos para os trabalhos e se tornavam senhores. Os que tinham alguma instrução tornavam-se caixas, escriturários, vendedores ambulantes ou balconistas, trabalhando por conta própria. Empregados assim que chegavam, com frequência pobres e esfarrapados, através de algum parente ou conhecido que emigrara antes e já se estabelecera, conseguiam eles, habitualmente, reunir modestos haveres, se fossem industriosos e poupados. Os que mais sucesso tinham, casavam-se, quase sempre, com a filha do seu patrão, ou com alguma jovem do lugar. Veremos que a família Matos se destacou nessa grande leva de aventureiros, e se enraizou, enriqueceu, mesmo tendo de aprender a conviver com uma justiça corrompida e ineficiente, impostos escorchantes, moeda e produtos escassos, monopólios reais, contrabando, burocracia emperrada, falta de apoio e crédito para empreender, opressão religiosa, e costumes relaxados». In Ana Miranda, Musa Praguejadora, Editora Record, 2014, ISBN 978-850-106-602-2.

Cortesia de ERecord/JDACT