terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Nó de Sangue. Agustín Sánchez Vidal. «Era um homem muito bem relacionado na corte, e nunca desperdiçava uma ocasião destas para se mostrar em sociedade»

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A mestiça. Madrid. 1780
«(…) Aproximou-se Águeda que, depois de esperar dois beijos no ar junto às faces de Frasquita, se dirigiu a Sebastián: há muito que não te via, e ainda menos num teatro... Ao reparar no gesto de contrariedade da amiga, mudou de rumo e perguntou: onde é que tens estado? Nos montes de Torrero. Pertencem ao termo de Saragoça, elucidou Frasquita. Não sei se pertencem é a palavra adequada, observou Sebastián. Torrero está mesmo em cima da cidade, é como a sua acrópole. E o que fazias lá? Traçava os planos e os perfis para o Canal Imperial de Aragão. O que isso tem de bom para os engenheiros militares é que viajam muito e os vemos sempre frescos, com boas cores. É verdade que tu sempre foste bronzeado de pele... A propósito, porquê tanta agitação com esta estreia? Só sei que apresentam uma adaptação de uma comédia de Tirso de Molina, a que deram o título de O Nó Górdio, respondeu Frasquita. Águeda despediu-se e foi ao encontro de outro grupinho. Frasquita tirou um frasquinho de opalina, agitou-o, perfumou-se e só depois se aproximou do seu cavalheiro. Acho-te um pouco ausente. Estou bem, só um pouco preocupado. Por voltares aqui, não é? Isso bastaria. Ainda por cima tenho de falar com o Cañizares, o director da companhia de comédias. O meu pai deu-me uma mensagem para lhe entregar em mão própria. Então vai. Eu espero por ti.
A apreensão de Sebastián aumentou ao ver entre a assistência o marquês de Montilla, observando com um ar entre o displicente e o desafiador. O aspecto do homem era inconfundível, com aquelas cicatrizes que lhe sulcavam o rosto e que os ligavam de maneira inseparável e por toda a vida. Para falar verdade, a presença do marquês não deveria espantá-lo. Era um homem muito bem relacionado na corte, e nunca desperdiçava uma ocasião destas para se mostrar em sociedade. Mas ensombrava, e muito, o seu regresso àquele teatro, depois de tantos anos em que nem sequer se atreveu a passar-lhe em frente da fachada, tentando em vão afugentar os tristes episódios cuja recordação agora o assaltava. Quando quis entrar nos camarins, deparou com um inusitado aparato da guarda perante o qual se estilhaçaram todas as tentativas de explicação. Ao dar a volta para evitar os guardas, reparou que todos os acessos e saídas do edifício estavam vigiados, à espera da chegada de alguém. Quando o viu regressar tão rapidamente, Frasquita, com um olhar interrogativo, separou-se do grupinho em que estava e perguntou-lhe: o que aconteceu? A guarda ocupou o teatro. Passa-se alguma coisa. Nesse momento, um porteiro anunciou a presença do secretário de Estado, o conde Floridablanca. Um murmúrio de surpresa percorreu o salão, agitado de uma ponta à outra pela pressa nervosa de os grupos se juntarem, seguindo a passadeira central. Estavas a par de que o primeiro-ministro vinha?, perguntou-lhe Sebastián. Não. Também não percebo este secretismo todo, a não ser que façam isto por segurança. E se está cá o Floridablanca, também há-de estar o meu marido. Nesse momento apareceu o conde, com bastante prosápia e afectação. Viste?, sussurrou-lhe Frasquita ao ouvido, depois de saudar o ministro com uma inclinação de cabeça. Está cada dia mais ressequido. Não me admira que se entenda tão bem com o Onofre. Referia-se ao marido, Onofre Abascal, homem de confiança de Floridablanca para as questões delicadas e que agora se encontrava à sua esquerda.
Fonseca, porém, não olhava para o secretário de Estado, mas para aquela a quem o estadista concedera a honra de manter à sua direita: uma jovem morena e esbelta, de cabelos pretíssimos, os olhos ligeiramente oblíquos, de olhar vagaroso, a boca fresca, de arrasadora sensualidade, com uma tez entre a cor do cobre e da canela, como só é possível nas mestiças. Era uma beleza de cortar a respiração, que suspendia os ânimos e fazia o tempo parar. Pela primeira vez em muitos anos, referviam no íntimo de Sebastián sensações que julgava mortas para sempre». In Agustín Sánchez Vidal, Nó de Sangue, 2008, Editorial Presença, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-234-291-9.

Cortesia de EPresença/JDACT