sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

O Amante de lady Chatterley. DH Lawrence. «Mas metade do seu corpo, da cintura para baixo, estava paralisada para sempre. Assim. em 1920, Clifford e Constance regressaram a casa, Wragby Hall, a propriedade da família»

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«(…) A nossa época é essencialmente trágica. por isso recusamo-nos a vivê-la como tragédia. O cataclismo deu-se, estamos rodeados de ruínas, começámos a construir outras maneiras de viver, a alimentar novas pequenas esperanças. É uma tarefa difícil, já não há nenhuma estrada suave em direcção ao futuro: passamos ao lado dos obstáculos, ou saltamos-lhes por cima. Temos de viver para além de todos os céus que desabaram sobre as nossas cabeças. Esta era, mais ou menos, a posição de Constance Chatterley. A guerra tinha sido como um tecto que lhe caísse em cima, e ela compreendera que seria necessário viver e aprender. Tinha casado com Clifford Chatterley em 1917, durante o mês de licença que este passara em Inglaterra, mês esse que foi a sua lua-de-mel. Ele regressou à Flandres, de onde voltava seis meses mais tarde, mais ou menos em pedaços. Constance, mulher dele, tinha então vinte e três anos e ele vinte e nove. O seu apego à vida era maravilhoso. Não morreu. e foi possível tornar a juntar os pedaços. Durante dois anos viveu nas mãos dos médicos, depois foi considerado curado e pôde voltar à vida. Mas metade do seu corpo, da cintura para baixo, estava paralisada para sempre. Assim. em 1920, Clifford e Constance regressaram a casa, Wragby Hall, a propriedade da família. O pai tinha morrido, Clifford herdara o título de sir Clifford, e Constance passou a ser então lady Chatterley.
Iniciaram a sua vida em comum numa casa bastante abandonada dos Chatterley, e com um rendimento razoavelmente limitado. Clifford tinha uma irmã, que já falecera, e não havia mais parentes próximos. O irmão mais velho morrera na guerra. Estropiado para o resto da vida, sabendo que não poderia nunca ter filhos. Clifford voltou para a fumacenta região dos Midlands para manter vivo, enquanto pudesse, o nome dos Chatterley. Não se sentia realmente destruído. Podia andar de um lado para o outro na sua cadeira de rodas, e tinha ainda uma outra, com um motor, para se deslocar lentamente no jardim e no parque, de uma subtil melancolia, de que tanto se orgulhava, embora se mostrasse desprendido de tudo. Sofrera tanto que tinha perdido, praticamente, a capacidade de sofrer. Era uma pessoa estranha, viva e cordial, quase alegre, com uma cara rosada e saudável e uns olhos azul-claros e provocantes. Tinha ombros largos e fortes. e umas mãos potentes. Vestia-se muito bem, usava sempre bonitas gravatas de Bond Street. Mas na sua cara era ainda visível o olhar vigilante, a ligeira vagueza de um inválido. Tinha estado tão perto de perder a vida que o que dela sobrava tornara extraordinariamente precioso para ele. Isto revelava-se muito bem no brilho ansioso dos seus olhos e no seu orgulho de continuar vivo após tão grande choque. Mas a ferida fora tão grande que qualquer coisa dentro dele morrera, alguns dos seus sentimentos tinham desaparecido. Havia um espaço em branco inanimado. Constance, sua mulher, tinha um ar de rapariga do campo, corada, com cabelo castanho, um corpo bem constituído, movimentos lentos carregados de uma enorme energia. Tinha uns olhos grandes e espantados e uma voz suave e doce. Parecia uma rapariga da aldeia, mas não era. O pai era o velho sir Malcolm Reid, um membro em tempos ilustre da Academia Real de Pintura. A mãe fora uma fabiana erudita nos tempos pré-rafaelitas da prosperidade. Constance e sua irmã Hilda tinham sido educadas entre artistas e socialistas cultos e recebido aquilo a que se pode chamar uma educação esteticamente não convencional. Em Paris, Florença e Roma, tinham respirado arte, em Haia e Berlim tinham entrado em contacto com as grandes convenções socialistas, onde se discursava em todas as línguas civilizadas e ninguém se sentia embaraçado.
Assim, desde muito cedo, nenhuma das raparigas se deixava intimidar pela arte ou por ideologias políticas. Constituíam a sua atmosfera habitual. Eram simultaneamente cosmopolitas e provincianas, com aquele provincianismo cosmopolita da arte que acompanha os puros ideais sociais. Aos quinze anos tinham sido mandadas para Dresden, para estudar música, entre outras coisas, e aí passaram uns tempos muito agradáveis. Viviam livremente entre estudantes, discutiam com os homens filosofia, sociologia e arte, e eram tão boas como eles, ou melhores ainda, pelo facto de serem mulheres. E iam para a floresta com robustos tocadores de guitarra, cantavam canções de Wandervogel, e eram livres. Livres! Essa a grande palavra, num mundo sem restrições, em florestas, à luz da manhã, com rapazes atraentes e com belas vozes, livres de fazerem o que queriam e, acima de tudo, de dizer o que queriam. A possibilidade de falar era de uma importância capital; era um debate apaixonado, no qual o amor não passava de mero acompanhamento». In D. H. Lawrence, O Amante de lady Chatterley, 1928, Relógio D’Água Editores, Ficções, 2011, ISBN 978-972-708-848-1.

Cortesia de RD’ÁguaE/JDACT