quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

O Anel. Jorge Molist. «Um impacto, um abalo sem importância. Estranho, pensei, não há terramotos em Nova Iorque. Subi ao meu escritório, cumprimentava e estava a entrar no meu gabinete quando chegou a notícia»

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«(…) Amo-te, disse-me Mike, afastando o olhar da estrada por um momento; acariciava-me o joelho. Amo-te, meu amor, respondi e levei a sua mão à boca para a beijar. Estava uma linda manhã de Inverno e Mike conduzia descontraído e feliz. O sol fazia brilhar os troncos e os ramos nus das árvores caducas e perdia-se no verde dos abetos. A transparência e a luminosidade do dia enganavam; ninguém imaginaria, do interior do veículo aquecido pelo astro-rei, o frio que estava no exterior. Teremos de dizer uma data, disse-me. Uma data? Sim, claro. Uma data para o casamento, olhava para mim com um ar surpreendido pela minha distracção. Sim, claro, respondi, pensativa. Onde tinha eu a cabeça? Depois de aceitar o pedido, há que casar, reflecti. E se Mike me ofereceu o anel, é porque quer casar. E se lhe disse que sim, é porque também quero. Deveria estar ansiosa por celebrar o casamento. Mas em vez de ocupar os meus neurónios a fazer planos, cheios de ilusões, sobre o meu vestido branco, o das damas de honor, o bolo e tudo o que é necessário para o dia mais feliz da minha vida, Mike surpreendeu-me a pensar no anel. E não propriamente no dele. Pensava no outro, no do mistério. Mas isso, é claro, não lho iria confessar. E quando decidirmos a data, acrescentei, teremos de preparar os convites, o guarda-roupa, o banquete, a igreja... Naturalmente. Que bem!, afirmei risonha. Longe vá o agoiro!, disse para mim mesma. Como terei chegado até aqui?. E recordei o dia em que tudo começou...
Pela manhã, chegaram os pássaros de morte, tripulados por mortos e, com o seu fogo ceifaram milhares de vidas, enterraram os símbolos da nossa cidade, deixaram o nosso coração de luto. Vinham da noite escura, mil anos distantes, onde uma solitária meia-lua de sangue dá luz aos iluminados. E agora dói. Essas tores derrubadas doem-nos. Como dizem que nos doem os membros amputados, já ausentes. Deles só resta a sua dor. O imenso buraco continua ali e os seus fantasmas parecem povoar a noite da cidade. Não é a mesma. Nunca mais voltará a ser a mesma. Mas ainda é Nova lorque. Isso sê-lo-á sempre. Esse dia, e a sua noite, mudaram a minha cidade, mudaram o mundo, mudaram-me a mim, mudaram a minha vida.
Naquela manhã, tinha de ir ao tribunal, por causa de um intrincado caso de divórcio e atravessava a recepção do meu escritório, perto do Rockefeller Center, quando reparei em algo. Um impacto, um abalo sem importância. Estranho, pensei, não há terramotos em Nova Iorque. Subi ao meu escritório, cumprimentava e estava a entrar no meu gabinete quando chegou a notícia. Uma secretária ao telefone gritou: oh, my God!, formou-se um círculo de incrédulos à volta da rapariga e, para confirmar, subimos ao terraço do edifício, de onde, como em tantos outros terraços de Nova Iorque, se avistavam as torres. Vimos o fumo e gritámos horrorizados à chegada do segundo avião e do seu fogo; a partir desse momento, foi a loucura. Não era um acidente, era um ataque, qualquer coisa podia acontecer. As notícias eram primeiro confusas, depois trágicas e, em seguida, chegou a ordem para abandonar o edifício e a recomendação para sair de Manhattan. O zumbido das pás dos helicópteros fustigando o céu era o contraponto do uivo angustiante das sirenes dos bombeiros, das ambulâncias e da polícia que percorriam as ruas como formigas em formigueiro revolto, com a inútil intenção de fazer alguma coisa. Hesitei em abandonar a ilha a pé e apanhar um táxi até à casa dos meus pais, em Long Island, mas finalmente, decidi ir para o meu apartamento e ver o que acontecia pela televisão.
Sentia um sufoco horrendo. E comecei a ligar para conhecidos com escritório nas Torres Gémeas ou nas imediações. Muitos deles estavam impedidos, era difícil falar com eles e, quando consegui contactar com Mike, achei-o abatido. Trabalhando na Wall Street, tinha muitos amigos nas Torres e passou a manhã a tentar localizá-los, com escasso êxito. Já nos conhecíamos há meses e sabia que ele gostava de mim. Muito. Aceitava o facto de ser um tipo bem parecido e simpático, mas a coisa ficava por aqui. Os ingredientes estavam lá, mas não havia catalisador que os fizesse reagir. Ele queria que nos encontrássemos mais vezes, que nos envolvêssemos, mas eu punha travão. Às vezes, saíamos sozinhos, outras, em grupo; precisamente no sábado anterior, tínhamo-nos juntado com vários amigos. És demasiado exigente com os homens, repetia-me a minha mãe. Para ti, são todos patifes, insistia. Vê se consegues que algum te dure mais de seis meses…, e voltava a repetir. Há ocasiões em que a coitada me pesa... Calma, Mary, apaziguava o meu pai. Um dia destes, aparecerá o homem maravilhoso. Não é preciso conformar-se com o primeiro que aparece. Não é verdade?, e piscava-me o olho, cúmplice». In Jorge Molist, O Anel, Ésquilo, Lisboa, 2004, ISBN 972-860-543-9.

Cortesia de Ésquilo/JDACT