domingo, 1 de janeiro de 2017

Viagem a Portugal. José Saramago. «O viajante leva ao ombro, como lhe compete, a máquina fotográfica, mas envergonha-se, ainda não está habituado aos atrevimentos que os viajantes costumam ter»

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«A quem me abriu portas e mostrou caminhos, e também em lembrança de Almeida Garrett, mestre de viajantes».

De nordeste a noroeste, duro e dourado. O sermão aos peixes
«(…) De memória de guarda da fronteira, nunca tal se viu. Este é o primeiro viajante que no meio do caminho pára o automóvel, tem o motor já em Portugal, mas não o depósito da gasolina, que ainda está em Espanha, e ele próprio assoma ao parapeito naquele exacto centímetro por onde passa a invisível linha da fronteira. Então, sobre as águas escuras e profundas, entre as altas escarpas que vão dobrando os ecos, ouve-se a voz do viajante, pregando aos peixes do rio: vinde cá, peixes, vós da margem direita que estais no rio Douro, e vós da margem esquerda que estais no rio Duero, vinde cá todos e dizei-me que língua é a que falais quando aí em baixo cruzais as aquáticas alfândegas, e se também lá tendes passaportes e carimbos para entrar e sair. Aqui estou eu, olhando para vós do alto desta barragem, e vós para mim, peixes que viveis nessas confundidas águas, que tão depressa estais duma banda como da outra, em grande irmandade de peixes que uns aos outros só se comem por necessidades de fome e não por enfados de pátria. Dais-me vós, peixes, uma clara lição, oxalá não a vá eu esquecer ao segundo passo desta minha viagem a Portugal, convém a saber: que de terra em terra deverei dar muita atenção ao que for igual e ao que for diferente, embora ressalvando, como humano é, e entre vós igualmente se pratica, as preferências e as simpatias deste viajante, que não está ligado a obrigações de amor universal, nem isso se lhe pediu. De vós, enfim, me despeço, peixes, até um dia, ide à vossa vida enquanto por aí não vêm os pescadores, nadai felizes, e desejai-me boa viagem, adeus, adeus.
Bom milagre foi este para começar. Uma aragem súbita encrespou as águas, ou terá sido o rebuliço dos peixes mergulhando, e mal o viajante se calou não havia mais que ver do que o rio e escarpas dele nem mais que ouvir do que o murmúrio adormecido do motor. É esse o defeito dos milagres: não duram muito. Mas o viajante não é taumaturgo de profissão, milagres por acidente, por isso já está resignado quando regressa ao automóvel. Sabe que vai entrar num país abundoso em fastos de sobrenatural, de que logo é assinalado exemplo esta primeira cidade de Portugal por onde vai entrando, com seu vagar de viajante minucioso, cuja se chama Miranda do Douro. Há-de pois recolher com modéstia as suas próprias veleidades, e decidir-se a aprender tudo. Os milagres e o resto. Esta tarde é de Outubro. O viajante abre a janela do quarto onde passará a noite e, no imediato relance de olhos, descobre ou reconhece que é pessoa de muita sorte. Podia ter na sua frente um muro, um canteiro enfezado, um quintal com roupa pendurada, e havia de contentar-se com essa utilidade, essa decadência, esse estendal. Porém, o que vê é a pedregosa margem espanhola do Douro, de tão dura substância que o mato mal lhe pôde meter o dente, e porque uma sorte nunca vem só, está o Sol de maneira que a escarpada parede é uma enorme pintura abstracta em diversos tons de amarelo, e nem apetece daqui sair enquanto houver luz. Neste momento ainda o viajante não sabe que alguns dias mais tarde há-de estar em Bragança, no Museu do Abade de Baçal, olhando a mesma pedra e talvez os mesmos amarelos, agora num quadro de Dórdio Gomes. Sem dúvida pode abanar a cabeça e murmurar: como o mundo é pequeno...
Em Miranda do Douro, por exemplo, ninguém seria capaz de se perder. Desce-se a Rua da Costanilha, com as suas casas do século XV, e quando mal nos precatamos passámos uma porta da muralha, estamos fora da cidade olhando os grandes vales que para poente se estendem, cobre-nos um grande silêncio medieval, que tempo é este e que gente. A um dos lados da porta está um grupo de mulheres, todas vestidas de preto, conversam em voz baixa, nenhuma delas é nova, quase todas, provavelmente, já não se lembram de o terem sido. O viajante leva ao ombro, como lhe compete, a máquina fotográfica, mas envergonha-se, ainda não está habituado aos atrevimentos que os viajantes costumam ter, e por isso não ficou memória de retrato daquelas sombrias mulheres que estão falando ali desde o princípio do mundo. O viajante fica melancólico e augura mal de viagem que assim começa. Caiu em meditação, felizmente por pouco tempo: ali perto, fora das muralhas, estrondeou o motor de um bulldozer, havia obras de terraplenagem para uma nova estrada, é o progresso às portas da Idade Média. Torna a subir a Costanilha, diverge para outras caladas e varridíssimas ruas, ninguém às janelas, e por falar em janelas, descobre sinais de velhos rancores voltados para Espanha, mísulas obscenas talhadas na boa pedra quatrocentista. Dá vontade de sorrir esta saudável escatologia que não teme ofender os olhos das crianças nem os aborrecidos defensores da moral. Em quinhentos anos ninguém se lembrou de mandar picar ou desmontar a insolência, prova inesperada de que o português não é alheio ao humor, salvo se só o entende quando lhe serve os patriotismos. Não se aprendeu aqui com a fraternidade dos peixes do Douro, mas talvez haja boas razões para isso. Afinal, se as potências celestiais favoreceram um dia os Portugueses contra os Espanhóis, mal parecia que os humanos deste lado passassem por cima das intervenções do alto e as desautorizassem. O caso conta-se brevemente. Andavam acesas as lutas da Restauração, meados, portanto do século XVII, e Miranda do Douro, aqui à beirinha do Douro, estava, por assim dizer, a um salto duma pulga de acometidas do inimigo. Havia cerco, a fome já era muita, os sitiados desanimavam, enfim, estava Miranda perdida. Eis senão quando, isto é o que se diz, avança ali um garoto a gritar às armas, a incutir ânimo e coragem onde coragem e ânimo estavam desfalecendo, e de tal maneira que em dois tempos se levantaram todas aquelas debilidades, tomam armas verdadeiras e inventadas, e atrás do infante vão-se aos Espanhóis como se malhassem em centeio verde. São desbaratados os sitiantes, triunfa Miranda do Douro, escreveu-se outra página nos anais da guerra. Porém, onde está o chefe deste exército? Onde está o gentil combatente que trocou o pião pelo bastão de marechal de campo? Não está, não se encontra, ninguém o viu mais. Logo, foi milagre, dizem os mirandeses. Logo, foi o Menino Jesus». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1984, 1990, Editorial Caminho, 2000, ISBN 978-972-210-047-2.

Cortesia ECaminho/JDACT