domingo, 1 de janeiro de 2017

Viagem a Portugal. José Saramago. «Onde está a fronteira?, ele pergunta, e essa questão, que eu também me fiz tantas vezes perambulando no Danúbio ou em meus microcosmos, não se refere apenas ao confim entre Portugal e Espanha»

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«A quem me abriu portas e mostrou caminhos, e também em lembrança de Almeida Garrett, mestre de viajantes».

Prefácio de Claudio Magris àprimeira edição espanhola, reproduzida no Corriere della Sera (17 de Dezembro de 1999)
«José Saramago não gosta de prefácios. Essa foi uma das primeiras coisas que ouvi dele quando nos encontramos pela primeira vez em Lisboa, há muitos anos, e ele nos deu de presente, a mim e a Marisa, justamente este Viagem a Portugal. Inclusive as linhas iniciais desta viagem previnem contra os prefácios, que são inúteis se a obra não os solicita, ou indício de fraqueza, caso ela os demande. De facto eu não escreveria, e ninguém me pediria, uma introdução ao Ano da morte de Ricardo Reis, talvez o meu livro predilecto de Saramago, nem a outros romances dele, os quais tanto admiro. Mas a viagem, no mundo e no papel, é já por si uma espécie de prefácio contínuo, um prólogo a algo que sempre está por vir e continua sempre atrás da esquina; partir, parar, retornar, fazer e desfazer as malas, anotar no caderno a paisagem que escapa, desmorona e se recompõe enquanto a atravessamos, como uma sequência cinematográfica com seus fade in e fade out ou um rosto que muda no tempo. E depois retocar, apagar e reescrever aqueles apontamentos nesse trânsito da realidade para o papel e vice-versa que é a escritura, até neste sentido muito semelhante a uma viagem. Esta última, escreve Saramago no epílogo, sempre recomeça, sempre há-de recomeçar, assim como a vida, e cada anotação dele é um prólogo. Viagem a Portugal desmente as idiossincrasias de seu autor: ela traz uma apresentação e um apêndice. Cada texto autenticamente poético, e Viagem o é de modo intenso, sabe bem mais do que o próprio autor; aliás, essa é uma prova de sua grandeza. Saramago viaja em Portugal, ou melhor, dentro de si mesmo, e não só, como ele diz, porque Portugal é a sua cultura. É no mundo, no espelho das coisas e dos outros homens, que se encontra a si mesmo, como aquele pintor de de que fala uma parábola de Borges, que pinta paisagens, montes, árvores, rios e no fim se dá conta de que, dessa maneira, havia retratado o próprio rosto. Toda a verdadeira viagem é uma odisseia, uma aventura cuja grande questão é se nela nos perdemos ou nos encontramos ao atravessarmos o mundo e a vida, se apreendemos o sentido ou descobrimos a insensatez da existência. Desde as origens e daquele que talvez seja o maior de todos os livros, a Odisseia, literatura e viagem surgem estreitamente ligadas, uma exploração análoga, desconstrução e recomposição do mundo e do eu. Uma verificação do real que, em sua fidelidade, torna-se invenção e ainda inventa o eu viajante, um personagem literário. Viagem a Portugal é um fascinante exemplo disso. O viajante avança, como na vida, numa mistura de planeamento e casualidade, metas prefixadas e súbitas digressões que levam a outras paragens; erra a estrada, volta atrás, salta rios e riachos; não tem certeza sobre o que visitar e o que deixar de lado, porque viajar também é, assim como a escrita e a vida, sobretudo abdicar. Ele se detém diante de momentos gloriosos, de grandes personagens e obras-primas da arte, a admirável descrição de quadros e especialmente de igrejas, cinzeladas ou descascadas pelo vento e pelos séculos, mas também nos rostos das pessoas encontradas e entrevistas apenas por um instante, nos quais se lê uma história ao mesmo tempo individual e colectiva, como as mulheres de Miranda do Douro, que não se lembram de ter sido jovens, ou nas faces do Alentejo, apagadas por velhos jugos sociais. O viajante recolhe histórias célebres e obscuras, para ao sentir o perfume de uma mimosa que redime a mísera ruela de uma cidadezinha. Presta atenção nas cores, nas estações, nos cheiros, nas plantas, nos animais, com frequência ultrapassando a fronteira entre natureza e história, cruzar fronteiras é o ofício do viajante, e descobrindo que também ela, como todos os confins, é precária. Onde está a fronteira?, ele pergunta, e essa questão, que eu também me fiz tantas vezes perambulando no Danúbio ou em meus microcosmos, não se refere apenas ao confim entre Portugal e Espanha. Quando ultrapassa este último, o viajante se dirige aos peixes que numa margem nadam no Douro e, na outra, no Duero, pedindo conselho e talvez recordando que são Tiago havia pregado aos salmões, mesmo que fosse para convertê-los e induzi-los a aceitar seu destino de ser pescados e comidos. Protagonistas desta viagem também são, em páginas maravilhosas, o esplendor das águas do rio que encontram as do mar, a luz da praia, o brilho da cascata, a solidão da lagoa, o romper-se do oceano contra os rochedos, música que evoca um grande silêncio, o ouro escurecido da noite que se apaga nas planícies perto de Serpa, as pedras românicas mesmo as mais humildes, das quais, porém, nascia uma grande arte, porque “os construtores sabiam que estavam erigindo a casa de Deus. Também neste livro, que sinto extraordinariamente próximo ao meu vagabundear no mundo e na cabeça, a viagem se embrenha não só no espaço, mas sobretudo no tempo; é experiência de sua plenitude e fugacidade e, simultaneamente, guerrilha contra esta última, desejo de reter a tarde que foge e que amanhã não será a mesma, de parar o tempo ou de contê-lo errando no espaço. A viagem, como diz o título de um livro de Gadda, tem a ver com a morte, e é por isso que aferra momentos tão intensos de vida e se encanta, numa esplêndida passagem do livro, perante uma proibição, passível de pesada multa, de destruir ninhos; proibição que, imagino, José Saramago aprove ainda mais que a de escrever prefácios. Para compreender de facto, o viajante paradoxalmente deveria deter-se, ser sedentário, participar a fundo da vida que atravessa e deixa para trás; eu viajo permanentemente, e sempre pensei que o viajante é alguém que gostaria de ser residente, radicado, mas em muitos lugares. A viagem não termina nunca, mas os viajantes, isto é, nós, terminamos. Este viajante português afirma, a certa altura, que esteve no bairro de Alfama mas que não sabe o que Alfama é. Nós também estamos na vida sem saber o que ela é». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1984, 1990, Editorial Caminho, 2000, ISBN 978-972-210-047-2.

Cortesia ECaminho/JDACT