quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

O Evangelho Segundo Lázaro. Richard Zimler. «Agora receio que os mais ardentes seguidores de Yeshua e eu acabemos por nos tornar inimigos, porque vim a saber que muitos deles ouvem o clangor do “shofar” da divindade em cada sílaba que pronunciou»

jdact

«Talvez a intenção de Yeshua fosse simplesmente instalar-se no meu sonho como forma de juntar os nossos dois caminhos. Ao fim e ao cabo, numa idade ainda muito vulnerável, ele tivera de carregar o fardo de tudo aquilo que não se atrevia a revelar sobre o seu mundo interior e precisava de um companheiro que lhe ouvisse as confissões sem o julgar com severidade ou trair os seus segredos, e que estivesse disposto a atravessar a pé com ele as águas mais lodosas e traiçoeiras da Torá. Porém, e dado o seu conhecimento de tudo o que permanece escondido dos olhos dos restantes, talvez ele tenha querido sugerir que criou o meu sonho e o colocou na mente adormecida do rapazinho de oito anos que eu fora. Suponho que até seja possível que tenha querido fazer-me crer que recuara no tempo vinte e oito anos e o implantara em mim, de forma a parecer que eu, já em miúdo, fora capaz de profetizar os acontecimentos mais traumáticos da minha idade adulta. Se eu acreditasse que ele conseguira prever todo o âmbito e toda a forma de que se revestiria não só a vida dele como a minha, então, também teria de aceitar a inquietante noção de que ele já sabia há algum tempo onde a nossa jornada acabaria. Sabia que eu seria forçado a fugir com os meus filhos de um lar afogado em sangue, perseguido tanto pelo faraó como por Zadok, apertando nos meus braços trémulos a sua derradeira dádiva para mim. Onde morreres também eu morrerei, e aí serei sepultada. Foi a promessa feita por Rute, a Moabita, à sua sogra, Naomi, e, embora a fidelidade da jovem sempre me tivesse comovido, foi só quando murmurei as suas palavras de mim para comigo, no topo de uma colina estéril, enquanto o meu olhar se estendia por sobre o braço transversal da cruz de Yeshua e abarcava tudo o que a partir daí nunca viria a acontecer, que me apercebi de que era bem possível que ela considerasse um acto de bondade o facto de o Senhor pôr termo à sua vida.
Não gostaria de pensar que Yeshua me introduziu com cuidado, e ao longo de décadas, na intricada teia dos seus planos, simplesmente para no fim a puxar até ao último fio e deixar-se ficar, nu e destroçado, perante os seus executores. E, não apenas por causa das décadas de esperança que eu depositara nele. Para dizer a verdade, resisto a essa ideia porque descobri que não constitui qualquer consolo saber que há homens que conseguem fazer o que parece impossível a todos nós, feitos que desafiam qualquer tentativa de compreensão. Cuidado com os homens que não veem nenhum mistério quando olham para o seu reflexo. Foi o meu pai que me disse isto. Falava de um tirânico prefeito romano desse tempo, mas acreditava que todos nós somos mudados para melhor, tornamo-nos mais humildes e misericordiosos, no mínimo, quando reconhecemos que a nossa identidade tende a escapar-nos de cada vez que lutamos para a apanhar. E se o eu que dirige as nossas acções não for fixo e permanente, então, como poderemos alguma vez ter a certeza de quem somos e do que Deus nos pediu para fazer? Agora receio que os mais ardentes seguidores de Yeshua e eu acabemos por nos tornar inimigos, porque vim a saber que muitos deles ouvem o clangor do shofar da divindade em cada sílaba que pronunciou. Seria ele realmente um faraó ou rei judeu, como queriam fazer-nos acreditar? Se ao menos eu tivesse entrevisto a possibilidade de os romanos virem a prendê-lo... Então, tê-lo-ia pressionado a fugir comigo da nossa terra natal, e nunca teria aceitado um não por resposta. Mas no final, meu neto adorado, não houve tempo para súplicas nem discussões, o que, mais uma vez, é sinal de que nunca estamos verdadeiramente em casa neste mundo. Embora talvez o próprio Senhor desejasse ter mais tempo. Seria heresia supor que sim? Nesse caso, também já não me importa; três décadas de saudade e arrependimento deram-me o direito de te falar com franqueza.
Querido Yaphiel, para poder começar a escrever nesse pergaminho que agora tens nas mãos, comprei hoje de manhã tinta numa tenda do teu mercado favorito, o preferido dos vendedores de flores da nossa ilha e que se anima de vida todas as madrugadas, ao lado do templo de Atena. Quando cheguei a casa tranquei-me no meu quarto de orações secreto. consegues ver-me lá? Neste preciso momento, estou sentado no mosaico de Yeshua, sob o terebinto que cresce no centro do meu mundo. Imagina a ponta do meu cálamo a desenhar estas palavras. Imagina-me a tentar falar-te sobre assuntos que nunca poderão inscrever-se com facilidade ou desenvoltura num rolo de papiro. Imagina-te de pé no ponto final de cada frase. Estou decidido a não deixar nada por dizer, porque mereces que te dê uma explicação cabal sobre o motivo por que fui tão incrivelmente indelicado contigo no outro dia. E também porque me apercebi de que chegou finalmente a altura de te falar acerca do teu lugar na minha vida, há tanto tempo mantido em segredo, o que, por sua vez, significa que tenho de te falar sobre o homem que quiseste conhecer da última vez que estivemos juntos. De Yeshua. Ele é o nosso alef e o nosso tav, e todas as letras entre estas duas, porque ele é o autor da dádiva, aquele que nos reuniu, se conseguir ganhar coragem para tal, pedir-te-ei igualmente um favor que não posso pedir a mais ninguém. Um aviso: o teu avô não é o homem que julgavas que era. Significará isso que não és bem o jovem que sempre pensaste ser? Talvez. Só tu, meu filho, poderás ter a certeza. Pede e o teu desejo será concedido. Procura e encontrarás. Bate à porta e ela abrir-se-á para ti. In Yeshua ben Yosef
In Richard Zimler, O Evangelho Segundo Lázaro, Porto Editora, 2016, ISBN 978-972-004-854-7.

Cortesia de PEditora/JDACT