quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

O Mercador de Livros Malditos. Marcello Simoni. «Hulco foi arremessado para o exterior e bateu com o nariz e os joelhos no chão do corredor. Pousou as mãos, dando uma volta o mais rapidamente possível…»

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O Mosteiro dos Enganos
«(…) Entretanto, os comparsas viram o abade Rainerio a sair do Castrum Abbatis. Fora directo ao refeitório, mas sozinho. Caminhava curvado e mal-humorado. E o hispânico, onde estará?, perguntou-se Ginesio. Está ali, olha. Vê-se à janela do solar. Ginesio seguiu com o olhar o indicador do companheiro até um ponto preciso do Castrum Abbatis. Encostado a uma janela geminada do segundo andar, viu duas pessoas a conversar, o padre bibliotecário e o mercador de Toledo. O hispânico está a falar com o padre Gualimberto, comentou, surpreendido. Vais ver que se vão demorar por ali o tempo necessário, troçou Hulco, impaciente por cumprir as ordens. Eu vou. Tu toma atenção para que ninguém entre. Ginesio não teve tempo de lhe responder, pois o companheiro já se precipitara escadas abaixo.
Hulco chegou ao quarto do mercador. Uma vez que não havia ninguém por ali, não precisava de se preocupar com o barulho. Transposta a entrada, lançou os olhos na direcção da cama. Desta vez o baú estava lá, bem à mostra. Não precisava de se esforçar para o procurar. Avançou com os dedos sujos estendidos e estava já prestes a tocar no baú quando alguém lhe encostou uma coisa cortante à garganta. Uma faca! Não teve tempo de agir quando uma mão lhe agarrou o pulso direito e o imobilizou. Os ossos da coluna estalaram. Hulco foi arrastado para trás. O homem que o segurava era alto e movia-se com rapidez. Quase não se lhe ouvia os passos. Era o fim, pensou. Era um homem morto.
A lâmina começou a premir o pescoço. O metal enterrou-se na carne, abrindo um golpe vermelho por debaixo da pele suja. De repente parou, e uma voz falou por detrás do servo: se te encontro mais alguma vez a espiolhar este quarto, corto-te a garganta. Hulco percebeu então de quem se tratava: devia ser o mercador. Como diabos teria feito? Como conseguira entrar tão rapidamente, sem que Ginesio conseguisse apanhá-lo? Um homem que se movia assim como um gato só podia ser um necromante. O servo não teve tempo nem de reagir, nem de pensar em mais nada. Foi atirado para a porta, e só então a faca se desencostou do pescoço. A lâmina estava suja do seu sangue. Ignazio limpou-a debaixo do casaco, esfregando-a sem pressa, depois agarrou-o por trás e afastou-o com um pontapé no traseiro.
Hulco foi arremessado para o exterior e bateu com o nariz e os joelhos no chão do corredor. Pousou as mãos, dando uma volta o mais rapidamente possível para se livrar do inimigo, mas encontrou-se com a lâmina apontada ao queixo. O mercador estava curvado sobre ele. Manejava a faca com indiferença, como se brincasse com uma pena de prata. Julgas, por acaso, que um labrego da tua laia consegue fazer-me o ninho atrás da orelha? Ignazio esboçou um sorriso trocista, mas o tom da sua voz era intimidatório. Vai-te embora daqui antes que eu reconsidere. O servo recuou, mas o mercador prendeu-o pela gola. E vê se não te esqueces mais disto!, exclamou, fazendo cintilar a lâmina diante dos seus olhos. Depois largou-o. Hulco estremeceu, levou a mão ao pescoço ensanguentado e esgueirou-se cabisbaixo.
Ignazio viu-o afastar-se. Guardou a faca num bolso no interior da túnica, abriu o baú e retirou uma saqueta de pele com as raízes para Gualimberto. Saiu do quarto, desceu as escadas com calma e ao transpor a porta da hospedaria passou perto de dois companheiros agachados por detrás do balcão, entretidos à conversar sobre o sucedido. Ginesio olhou-o como se visse um fantasma e depois dirigiu-se a Hulco, que ainda tremia. Asseguro-te que não o vi entrar! Não sei como conseguiu! Ignazio troçou, satisfeito, e regressou ao Castrum Abbatis. Agora tinha a certeza de que não voltariam a pôr os pés no seu quarto». In Marcello Simoni, O Mercador de Livros Malditos, 2011, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-224-029-4.

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