domingo, 5 de março de 2017

A Ilha Debaixo do Mar. Isabel Allende. «Dança, dança, Zarité, porque escravo que dança é livre..., enquanto dança, dizia-me. Eu dancei sempre»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Aos meus quarenta anos, eu, Zarité Sedella, tive melhor sorte do que as outras escravas. Vou viver muitos anos e a minha velhice será feliz porque a minha estrela, a minha L'étoile, também brilha quando a noite está enevoada. Conheço o gosto de estar com o homem escolhido pelo meu coração quando as suas mãos grandes me despertam a pele. Tive quatro filhos e um neto, e os que estão vivos são livres. A minha primeira recordação de felicidade, quando era uma ranhosa ossuda e desgrenhada, é menear-me ao som dos tambores, e é essa também a minha mais recente felicidade, porque ontem à noite estive na Praça do Congo a dançar sem parar, sem pensamentos na cabeça, e hoje o meu corpo está quente e cansado. A música é um vento que leva os anos, as recordações e o temor, esse animal agachado que tenho dentro de mim. Com os tambores desaparece a Zarité de todos os dias e volto a ser a criança que dançava quando ainda mal sabia caminhar. Bato no chão com as plantas dos pés e a vida sobe-me pelas pernas, percorre-me o esqueleto, apodera-se de mim, tira-me os desgostos e adoça-me a memória. O mundo estremece. O ritmo nasce na ilha debaixo do mar, sacode a terra, atravessa-me como um relâmpago e sobe ao céu levando os meus pesares, para que papa Bondye os mastigue, os engula e me deixe limpa e contente. Os tambores vencem o medo. Os tambores são a herança da minha mãe, a força da Guiné que corre no meu sangue. Ninguém me leva a melhor então, torno-me envolvente como Erzuli, loa do amor, e mais veloz do que o chicote. Chocalham as conchas nos meus tornozelos e pulsos, perguntam as cabaças, respondem os djembés com a sua voz de bosque e os timbales com a sua voz de metal, convidam os djun-djuns que sabem falar e ronca o grande maman quando batem nele para chamar os loas. Os tambores são sagrados, os loas falam através deles. Na casa onde me criaram durante os meus primeiros anos, os tambores permaneciam calados na divisão que partilhava com Honoré, o outro escravo, mas costumavam passear muitas vezes. Madame Delphine, então a minha ama, não queria ouvir barulho de negros, só os queixumes melancólicos do seu clavicórdio. Às segundas e terças dava aulas a raparigas de cor, e no resto da semana ensinava nas mansões dos grands blancs, onde as senhoritas dispunham dos seus próprios instrumentos porque não podiam usar os mesmos que as mulatas tocavam. Aprendi a limpar as teclas com sumo de limão, mas não podia fazer música porque madame proibia-nos de nos aproximarmos do seu clavicórdio. Não nos fazia falta nenhuma. Honoré conseguia tirar música de uma caçarola, qualquer coisa na sua mão tinha compasso, melodia, ritmo e voz; tinha os sons no corpo, tinha-os trazido do Daomé. O meu brinquedo era uma cabaça oca que fazíamos tocar; depois, ensinou-me a acariciar devagarinho os seus tambores.
E isto logo no princípio, quando ele ainda me pegava ao colo e me levava aos bailes e aos serviços vodu, onde ele marcava o ritmo com o tambor principal para que os outros o seguissem. É assim que me recordo. Honoré parecia muito velho porque tinham-se-lhe arrefecido os ossos, embora, nessa altura, não tivesse mais anos do que os que agora tenho. Bebia tafia (aguardente de cana, de qualidade inferior ao rum) para suportar o sofrimento de se mexer, mas, mais do que esse licor áspero, o seu melhor remédio era a música. Os seus queixumes tornavam-se risos ao som dos tambores. Honoré só conseguia descascar batatas para a comida da ama com as suas mãos deformadas, mas a tocar o tambor era incansável e, quando se tratava de dançar, ninguém levantava os joelhos mais alto, nem abanava a cabeça com mais força, nem bamboleava o rabo com mais gosto. Quando eu ainda não sabia andar, fazia-me dançar sentada, e assim que consegui segurar-me nas duas pernas, convidava-me a perder-me na música, como num sonho. Dança, dança, Zarité, porque escravo que dança é livre..., enquanto dança, dizia-me. Eu dancei sempre.

Saint-Domingue. 1770-1793
Toulouse Valmorain chegou a Saint-Domingue em 1770, no mesmo ano em que o delfim de França se casou com a arquiduquesa austríaca Maria Antonieta. Antes de viajar para a colónia, quando ainda não suspeitava que o seu destino lhe ia pregar uma partida e acabaria enfaixado entre canaviais nas Antilhas, tinha sido convidado para ir a Versalhes a uma das festas em honra da nova delfina, uma rapariguinha loura, de catorze anos, que bocejava sem pejo no meio do rígido protocolo da corte francesa. Tudo isso foi remetido para o passado. Saint-Domingue era outro mundo. O jovem Valmorain tinha uma ideia bastante vaga do lugar onde o seu pai amassava, mal ou bem, o pão da família com a ambição de o converter numa fortuna. Tinha lido algures que os habitantes originais da ilha, os aruaques, lhe chamavam Haiti, antes de os conquistadores lhe trocarem o nome para La Española e acabarem com os nativos. Em menos de cinquenta anos, não sobrou um único aruaque vivo, nem como amostra: pereceram todos, vítimas da escravidão, das doenças europeias e do suicídio. Eram uma raça de pele avermelhada, cabelo forte e preto, de inalterável dignidade, tão tímidos que um só espanhol podia vencer dez deles com a mão nua. Viviam em comunidades polígamas, cultivando a terra com cuidado para não a esgotar: camote (espécie de batata-doce), milho, abóbora, amendoim, pimentos, batata e mandioca. A terra, como o céu e a água, não tinham dono, até os estrangeiros se apoderarem dela para cultivar plantas nunca vistas com o trabalho forçado dos aruaques. Começou nesse tempo o hábito de canzoar: matar pessoas indefesas açulando cães contra elas. Quando acabaram com os indígenas, importaram escravos sequestrados em África e brancos na Europa, condenados, órfãos, prostitutas e revoltosos». In Isabel Allende, A Ilha Debaixo do Mar, 2009, Porto Editora, 2015, ISBN 978-972-001-948-6.

Cortesia de PEditora/JDACT