sexta-feira, 3 de março de 2017

Claraboia. José Saramago. «O rosto pálido de Justina tornou-se de pedra. Continuou a conversar com Rosália até que a voz se ouviu mais alta e violenta: Justina!!!»

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«(…) Amélia murmurou um com licença!, seco e breve e fechou a porta. Justina desceu a escada. Vestia luto carregado e, assim, muito alta e fúnebre, com os cabelos pretos divididos ao meio por uma risca larga, parecia um boneco mal articulado, demasiado grande para mulher e sem o menor sinal de graça feminina. Só os olhos negros, profundos nas olheiras maceradas de diabética, eram paradoxalmente belos, mas tão graves e sérios que a graça não morava neles. Ao chegar ao patamar, parou junto da porta que ficava defronte da sua e aproximou o ouvido. De dentro não vinha qualquer rumor. Fez um trejeito de desprezo e afastou-se. Quando ia entrar, ouviu abrir-se uma porta no andar de cima e, logo a seguir, um ruído de vozes. Ajeitou o capacho para se dar um pretexto para não sair dali. De cima vinha um diálogo animado: rla o que não quer é ir trabalhar!, dizia uma voz feminina com asperezas de irritação. Seja lá o que for. É preciso cuidado com a pequena. Está na idade perigosa, respondeu uma voz de homem. Nunca se sabe o que estas coisas dão. Qual idade perigosa, qual quê? Hás de ser sempre o mesmo. Com dezanove anos, idade perigosa? Isso só teu!...
Justina achou conveniente sacudir o capacho com força, para anunciar a sua presença. A conversa, em cima, interrompeu-se. O homem começou a descer a escada, ao mesmo tempo que dizia: não a obrigues a ir. Se houver alguma novidade telefona-me para o escritório. Até 1ogo. Até 1ogo, Anselmo. Justina cumprimentou o vizinho com um sorriso sem amabilidade. Anselmo passou, fez um solene gesto na direcção da aba do chapéu e articulou com belo timbre uma saudação cerimoniosa. A porta da escada, em baixo, teve um bater cheio de personalidade, quando ele saiu. Justina cumprimentou para cima: bom dia, dona Rosália. Bom dia, dona Justina. Que tem a Claudinha? Está doente? Como soube? Estava aqui a sacudir o capacho e ouvi o seu marido. Pareceu-me perceber... Aquilo é manha. O meu Anselmo é que não pode ouvir a filha queixar-se. É o ai-jesus... Diz ela que lhe dói a cabeça. Mândria é que ela tem. Tão grande é a dor de cabeça que já está outra vez a dormir!
Nunca se sabe, dona Rosália. Foi assim que eu fiquei sem a minha filha, que Deus haja. Não era nada, não era nada, diziam, e lá se foi com a meningite... Tirou um lenço e assoou-se com força. Depois, continuou: coitadinha... Com oito anos... Não me esquece... Está agora a fazer dois anos, lembra-se, dona Rosália? Rosália lembrava-se e enxugou uma lágrima de circunstância. Justina ia insistir, lembrar pormenores já sabidos, apoiada à compaixão aparente da vizinha, quando uma voz rouca lhe cortou as palavras: Justina! O rosto pálido de Justina tornou-se de pedra. Continuou a conversar com Rosália até que a voz se ouviu mais alta e violenta: Justina!!! Que é?, perguntou. Faz favor de vir para dentro. Não quero conversas na escada. Se estivesse tão farta de trabalhar como eu, não tinha disposição para dar à língua! Justina encolheu os ombros com indiferença e prosseguiu a conversa. Mas a outra, incomodada pela cena, despediu-se. Justina entrou em casa. Rosália desceu alguns degraus e apurou o ouvido. Através da porta passaram exclamações ásperas. Depois, subitamente, o silêncio.
Era sempre assim. Ouvia-se o homem ralhar, depois a mulher pronunciava algumas poucas e inaudíveis palavras e ele calava-se. Rosália achava isto muito esquisito. O marido de Justina tinha fama de brutamontes, com o seu corpanzil inchado e os seus modos grosseiros. Ainda não chegara aos quarenta anos e parecia mais velho, por causa do rosto flácido, de olhos papudos e beiço reluzente sempre caído. Ninguém percebia como e por que dois seres tão diferentes se tinham casado. Verdade que também ninguém se lembrava de os ter visto juntos na rua». In José Saramago, Claraboia, 1953, Editorial Caminho, 2011, ISBN 978-972-212-441-6.

Cortesia ECaminho/JDACT