sábado, 4 de março de 2017

Contos de Eva Luna. Isabel Allende. «Muitos caíram pelo caminho, mas ela era tão teimosa que conseguiu atravessar o inferno e, por fim, chegar aos primeiros mananciais, finos fios de água, quase invisíveis»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Não era a mesma para todos, certamente, porque isso teria sido um engano colectivo. Cada um recebia a sua com a certeza de que ninguém mais a empregava para esse fim no universo inteiro e para lá dele. Belisa Crepusculario nascera numa família tão miserável, que nem sequer possuía nomes para chamar aos filhos. Veio ao mundo e cresceu na região mais inóspita, onde alguns anos as chuvas se transformam em avalanchas de água que arrastam tudo e noutros não cai nem uma gota do céu, o sol aumenta até ocupar o horizonte por inteiro e o mundo torna-se um deserto. Até completar onze anos não teve outra ocupação nem virtude senão sobreviver à fome e à fadiga dos séculos. Durante uma seca interminável coube-lhe enterrar quatro irmãos mais pequenos e, quando compreendeu que chegava a sua vez, decidiu começar a andar pelas planícies em direcção ao mar, a ver se, na viagem, conseguia enganar a morte. A terra estava escalvada, partida em gretas profundas, semeada de pedras, fósseis de árvores e de arbustos espinhosos, esqueletos de animais, esbranquecidos pelo calor. De vez em quando deparava com famílias que, como ela, iam até ao Sul seguindo a miragem da água. Alguns tinham iniciado a caminhada levando os seus haveres ao ombro ou em carrinhos de mão, mas mal podiam mover os próprios ossos e ao fim de pouco caminhar acabavam por abandonar as suas coisas. Arrastavam-se penosamente, com a pele feita couro de lagarto e os olhos queimados pela reverberação da luz. Belisa saudava-os com um gesto ao passar, mas não parava, porque não podia gastar as suas forças em exercícios de compaixão. Muitos caíram pelo caminho, mas ela era tão teimosa que conseguiu atravessar o inferno e, por fim, chegar aos primeiros mananciais, finos fios de água, quase invisíveis, que alimentavam uma vegetação raquítica e que mais adiante se transformavam em riachos e pântanos.

Belisa Crepusculario salvou a vida e, além disso, descobriu a escrita por acaso. Ao chegar a uma aldeia nas proximidades da costa, o vento pôs-lhe aos pés a folha de um jornal. Pegou naquele papel amarelo e quebradiço, esteve longo tempo a observá-lo sem adivinhar o seu uso, até que a curiosidade pôde mais que a timidez. Aproximou-se de um homem que lavava um cavalo no mesmo charco turvo onde ela saciara a sede. Que é isto?, perguntou. A página desportiva de um jornal, respondeu o homem sem dar mostras de espanto pela sua ignorância. A resposta deixou a rapariga atónita mas não quis parecer atrevida, limitou-se a perguntar o significado das patinhas de mosca desenhadas sobre o papel. São palavras, menina. Aí diz-se que Fulgencio Barba derrubou o negro Tiznão ao terceiro assalto. Nesse dia Belisa Crepusculario soube que as palavras andam soltas, sem dono, e que qualquer um com um pouco de manha pode agarrá-las para as vender. Considerou a sua situação e concluiu que para além de se prostituir ou empregar-se como criada nas cozinhas dos ricos, poucas eram as ocupações que podia desempenhar. Vender palavras pareceu-lhe uma alternativa decente. A partir desse momento exerceu tal profissão e nunca se interessou por outra. A princípio oferecia a sua mercadoria sem suspeitar que as palavras podiam também escrever-se fora dos jornais. Quando soube isso calculou as infinitas perspectivas do negócio, com as suas poupanças pagou vinte pesos a um padre para lhe ensinar a ler e escrever e com os três que lhe sobraram comprou um dicionário». In Isabel Allende, Contos de Eva Luna, 1987, Porto Editora, 2016, ISBN 978-972-004-095-4.

Cortesia de PEditora/JDACT