sexta-feira, 3 de março de 2017

O Segundo Sexo. Simone Beauvoir. «É exercendo a actividade sexual que os homens definem os sexos e suas relações, como criam o sentido e o valor de todas as funções que cumprem»

Cortesia de wikipedia e jdact

Factos e Mitos. Destino
«(…) A maior parte das filosofias tomou-a como admitida sem pretender explicá-la. Conhece-se o mito platónico: no princípio, havia homens, mulheres e andróginos; cada indivíduo possuía duas faces, quatro braços, quatro pernas e dois corpos, colados um ao outro; foram um dia partidos em dois, da maneira como se partem os ovos, e desde então cada metade procura reunir-se à sua metade complementar; os deuses decidiram, posteriormente, que pela junção das duas metades dessemelhantes novos seres humanos seriam criados. Mas é só o amor que essa história se propõe explicar: a divisão em sexos é tomada, de início, como um dado. Aristóteles não a justifica melhor, pois se a cooperação da matéria e da forma é exigida em toda acção, não é necessário que os princípios activos e passivos se distribuam em duas categorias de indivíduos heterogéneos. Assim é que são Tomás declara que a mulher é um ser ocasional, o que é uma maneira de afirmar, numa perspectiva masculina, o carácter acidental da sexualidade. Hegel, entretanto, teria sido infiel a seu delírio racionalista se não houvesse tentado fundamentá-la logicamente. A sexualidade representa, a seu ver, a mediação através da qual o sujeito se atinge concretamente como género. O gênero produz-se nele como um efeito contra essa desproporção de sua realidade individual, como um desejo de reencontrar, em outro indivíduo de sua espécie, o sentimento de si mesmo unindo-se a ele, de se completar e envolver, assim, o género em sua natureza e trazê-lo à existência. E tem-se a união sexual. E mais adiante: o processo consiste em saber o que eles são em si, isto é, um só género, uma só e mesma vida subjectiva, eles o põem também como tal. E Hegel declara a seguir que, para que se efectue o processo de aproximação, é preciso primeiramente que haja diferenciação dos dois sexos. Mas sua demonstração não é convincente: sente-se nela demasiadamente a ideia preconcebida de reencontrar em toda operação os três momentos do silogismo. A superacção do indivíduo na espécie, mediante a qual indivíduo e espécie se realizam em sua verdade, poderia efectuar-se, sem terceiro termo, na simples relação do gerador com a criança: a reprodução poderia ser assexuada. Ou, ainda, a relação de um a outro poderia ser a de dois semelhantes, residindo a diferenciação na singularidade dos indivíduos de um mesmo tipo, como acontece nas espécies hermafroditas. A descrição de Hegel realça uma significação muito importante da sexualidade, mas seu erro consiste em fazer sempre razão da significação. É exercendo a actividade sexual que os homens definem os sexos e suas relações, como criam o sentido e o valor de todas as funções que cumprem: mas ela não está necessariamente implicada na natureza do ser humano. Na Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty observa que a existência humana nos obriga a rever as noções de necessidade e de contingência. A existência, diz ele, não tem atributos fortuitos, não tem conteúdo que não contribua para dar-lhe sua forma, não admite em si mesma nenhum facto puro, pois é o movimento pelo qual os factos são assumidos. É verdade. Mas é também verdade que há condições sem as quais o próprio facto da existência aparece como impossível. A presença no mundo implica rigorosamente a posição de um corpo que seja a um tempo uma coisa do mundo e um ponto de vista sobre esse mundo: mas não se exige que esse corpo possua tal ou qual estrutura particular. Em O ser e o nada, Sartre discute a afirmação de Heidegger, segundo a qual a realidade humana está condenada à morte pelo facto de sua finitude; Sartre estabelece que uma existência finita e temporalmente ilimitada seria concebível; entretanto, se a vida humana não fosse habitada pela morte, a relação do homem com o mundo e consigo mesmo seria tão profundamente transtornada que a definição o homem é mortal se apresentaria como coisa inteiramente diversa de uma verdade empírica: imortal, um ser existente não seria mais isso que chamamos um homem». In Simone Beauvoir, O Segundo Sexo, volume 1, 1949, 2009 / 2015, Quetzal Editores, colecção Serpente Emplumada, ISBN 978-989-722-193-4.

Cortesia de Quetzal Editores/JDACT