sábado, 22 de abril de 2017

Histórias Brejeiras. Artur Azevedo. «O último a sair foi o bacharel Pinheiro, proprietário e redator principal d’A “Opinião Pública”, órgão do partido conservador»

jdact e wikipedia

Pobres Liberais
«(…) Foi no tempo do Império. O notável político Francelino Lopes, sendo presidente de uma província cujo nome não mencionarei para não ofender certas susceptibilidades, aliás mal entendidas, resolveu, aquiescendo ao desejo dos chefes mais importantes do partido conservador (era o que estava de cima), fazer uma grande excursão por todo o interior da província, visitando as principais localidades. A notícia dessa resolução abalou necessariamente a população inteira, e por toda a parte, não só as câmaras municipais como os cidadãos mais importantes, correligionários do governo, se prepararam para receber condignamente o ilustre delegado do gabinete imperial. Na primeira cidade visitada por Francelino, foi S. Exa. recebido na estação de caminho de ferro, que se achava ricamente adornada, ao som do hino nacional, executado por uma indisciplinada charanga, e das bombas dos foguetes estourando no ar e das aclamações do povo, cujo entusiasmo, se não era real, era, pelo menos, espalhafatoso e turbulento.
Estavam presentes todas as autoridades locais. Houve três discursos, cada qual mais longo, a que S. Exa. respondeu com poucas mas eloquentes palavras. Da estação de caminho de ferro, seguiu o presidente, a carro, acompanhado sempre pelas autoridades e grande massa de povo, para a câmara municipal, onde o esperava opíparo banquete, a que fez honra o estômago de S. Exa., o qual estava a dar horas como se fosse o estômago de um simples mortal. À mesa, defronte do presidente, sentou-se a baronesa de Santana, esposa do chefe do partido dominante, abastado fazendeiro, que se reservara a honra e o prazer de hospedar o grande homem.
Este, que era bem parecido, que não tinha ainda 40 anos, e gozava na capital do império de uma reputação um tanto donjuanesca, sentia-se devorado pelos olhares ardentes da baronesa, de idade digna de um príncipe. Eram 9 horas da noite quando terminou o banquete pelo brinde de honra, erguido por S. Exa. à sua majestade, o Imperador. Como a charanga estivesse presente e as moças manifestassem o desejo de dançar, improvisou-se um baile, e o Francelino Lopes dançou uma quadrilha com a baronesa, apertando-lhe os dedos de um modo que nada tinha de presidencial. A essa inócua manifestação muscular limitou-se, entretanto, o esboçado namoro, que não prosseguiu por falta absoluta de ocasião.
Como o presidente se queixasse da fadiga produzida pela viagem, a festa foi interrompida, e as autoridades conduziram S. Exa. aos aposentos que lhe estavam reservados em casa do barão, na mesma praça onde se achava o edifício da Câmara. Nessa casa que, apesar de baixa, era a melhor da cidade, haviam sido preparadas duas salas e uma alcova para o ilustre hóspede. Qualquer dos três compartimentos estava luxuosamente mobiliado e o leito era magnífico. Os donos da casa, o presidente da Câmara, o juiz de direito, o juiz municipal, o vigário, o delegado de polícia e outras pessoas gradas, mostraram a S. Exa. Os seus cómodos, pedindo-lhe mil desculpas por não ter sido possível arranjar coisa melhor, e todos se retiraram fazendo intermináveis mesuras.
O último a sair foi o bacharel Pinheiro, proprietário e redator principal d’A Opinião Pública, órgão do partido conservador. Peço permissão para oferecer a V. Exa. o número do meu jornal publicado hoje. Traz a biografia e o retrato de V. Exa.. V. Exa. me desculpará, se não achar essa modesta manifestação de apreço à altura dos merecimentos de V. Exa. O Francisco Lopes agradeceu, fechou a porta e soltou um longo suspiro de alívio.
Logo que se viu sozinho, o presidente lembrou-se do seu criado de quarto, que ali devia estar... Onde se meteria ele? Provavelmente adormecera noutro cómodo da casa. Felizmente o dorminhoco tivera o cuidado de desarrumar a mala de S. Exa. E pusera à mão a sua roupa de cama e os seus chinelos. O hóspede descalçou-se, despiu-se, envergou a camisola de dormir, deitou-se, e abriu A Opinião Pública, disposto a ler a sua biografia antes de apagar a vela. Apenas acabara de examinar o retrato, detestavelmente xilografado, sentiu S. Exa. uma dolorosa contracção no ventre, e logo em seguida a necessidade imperiosa de praticar certo acto fisiológico de que nenhum indivíduo se pode eximir, nem mesmo sendo presidente da província. Ele saltou do leito e começou a procurar o receptáculo sem o qual não poderia obedecer à natureza; mas nem no criado-mudo nem debaixo da cama encontrou coisa alguma. Farejou todos os cantos: nada!» In Artur Azevedo, Histórias Brejeiras, 1962, Projecto Livro Livre, nº 519, Iba Mendes, 2014.

Cortesia de IMendes/JDACT