domingo, 2 de abril de 2017

O Manuscrito nos Confins do Mundo. Marcelo Simoni. «Foi então que o reconheceu. Era o homem do manto! Incapaz de o deter, viu-o transpor a ombreira»

jdact

O signo do sagitário. Paris, noite de 26 de Fevereiro
«(…) O homem do manto não o largava, continuava a arrastar-se tenazmente sobre a perna direita. O médico supôs que estivesse ferido, depois reparou que lhe fazia sinal para que parasse e temeu o pior. Devorado pelo temor, virou à esquerda e percorreu um beco lamacento até chegar a um vinhedo. Prosseguiu, escondendo-se por entre as fileiras até se convencer de que o homem lhe tinha perdido o rasto; foi então que saiu a descoberto e se lançou a correr pela Grande Rue. Conhecia bem aquelas paragens. Os teólogos do Convento de Saint-Jacques tê-lo-iam ajudado, caso precisasse. Mas assim que chegou próximo do dito edifício, percebeu que já não corria perigo. O homem do manto desaparecera.
Abrandou o passo e apoiou-se à parede, respirando com grande dificuldade. Tinha a testa suada e os joelhos dormentes, havia séculos que não corria assim. Olhou várias vezes para trás, temendo ter-se enganado. Mas não, na verdade o homem perdera-se. Podia prosseguir calmamente até sua casa. Suspirou e percorreu a Grande Rue na direcção das margens do Sena, deslizando por entre os clarões dos archotes presos às paredes, ao mesmo tempo que a rua se tornava cada vez mais limpa e mais larga. A ansiedade, porém, continuava a assediá-lo. Quem seria aquele indivíduo? O que quereria dele? Tentou distrair-se pensando no que teria de fazer no dia seguinte, terça-feira gorda. Teria seguramente aulas e encontraria o seu aluno predilecto, Bernard, que aspirava ao cargo de bacharel.
Imerso nestes pensamentos, chegou à rive gauche. O Sena corria um pouco mais além, por trás de uma fila de pequenas casas erigidas debaixo de uma ponte de pedra, a Petit-Pont. Suger percorreu-a até meio, escutando o profundo fluir das águas, depois parou em frente de uma porta consumida pela humidade. Estava finalmente em casa. Antes de entrar, olhou para a Île de la Cité, que se recortava como um grande navio no meio do rio. O coração de Paris. Ali se erguiam a Catedral de Notre-Dame e a escola do Capítulo. Ali se dava audiência a homens de nomes sonantes como Rolando de Cremona, o teólogo dominicano vindo de Itália. Catedráticos ilustres que para se manterem não precisavam seguramente de recorrer a expedientes miseráveis…
No entanto, ele próprio era magíster! Não era de certeza por ter recusado fazer-se padre ou porque ensinava uma matéria que os teólogos não viam com bons olhos. Que aqueles beatos o admitissem pelo menos, a salvação da humanidade dependia do estudo de Avicena, não de Santo Agostinho. E mandando-os todos ao diabo, com um gesto de desprezo, transpôs a porta. Estava cansado e só lhe apetecia deitar-se e dormir, mas ao tentar fechar a porta foi acometido inesperadamente por um estremecimento. A ponta de um sapato insinuara-se entre a ombreira e o batente. Suger agiu instintivamente e tentou esmagá-lo de encontro à porta, mas antes de poder dar-se conta do que acontecia, viu uma grande mão enfiar-se na fresta e fazer resistência. Continuou a pressionar, servindo-se de todo o seu peso, mas o intruso era mais forte e conseguiu alargá-la o bastante para entrar. Foi então que o reconheceu. Era o homem do manto!
Incapaz de o deter, viu-o transpor a ombreira. O que quereis de mim?, perguntou-lhe, entre irritado e espantado. Não é minha intenção fazer-vos mal, assegurou o desconhecido, com um marcado sotaque alemão. Era alto e bem lançado, mas parecia no limite das suas forças. Segurava com a mão direita um saco de pano que trazia às costas. A mão esquerda, por sua vez, erguia-se em sinal de rendição. Preciso de vós. De mim, ou do meu dinheiro?, replicou Suger, recuando. Por trás dele, num ambiente de grande austeridade, havia uma cama, uma mesa e uma arca, tudo rodeado de estantes de livros. Procurou por entre as prateleiras qualquer coisa que usasse como arma, mas apenas encontrou um pilão de almofariz que brandiu com ar ameaçador. Sentiu-se quase ridículo. O homem com o manto avançou, circunspecto. Não sou nenhum ladrão.
Suger reparou no punhal que trazia à cintura e, mais abaixo, nas manchas de sangue na perna esquerda das calças. A ferida devia encontrar-se mais acima e estava a causar-lhe uma grave hemorragia. Preciso de um médico..., explicou o homem, em resposta aos seus olhares. - Ia pedir ajuda a Saint-Victor, quando vos vi sair da abadia. O monge de guarda disse-me quem éreis e decidi seguir-vos. Sem pedir licença, desencostou uma cadeira da mesa e sentou-se, pondo o saco ao colo». In Marcelo Simoni, O Manuscrito nos Confins do Mundo, 2013, Clube do Autor, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-169-7.

Cortesia de CdoAutor/JDACT