sexta-feira, 5 de maio de 2017

A Cruz, a Espada e a Sociedade Medieval Portuguesa. Sidinei Galli. «A cristianização da Península Ibérica foi conduzida pelos “viri religiosi” em pleno drama da reconquista»

jdact e wikipedia

«Portugal, o mais precoce dos estados europeus, nasceu da mutação de um feudo em reino no processo da reconquista ibérica. A preocupação desta obra é demonstrar não só a participação dos viri religiosi na formação de Portugal, já que este elemento tem sido ignorado pela historiografia, como também identificar as relações entre a Igreja e o nascente Estado Português. Lembramos que a tarefa do historiador não se restringe apenas à revelação de factos inéditos à luz de novas descobertas documentais. Compete-lhe, também, revelar relações ainda desconhecidas entre acontecimentos sobejamente provados, mas não relacionados entre si. Destarte, historiadores contemporâneos portugueses não têm manifestado o menor interesse em esclarecer as raízes da nacionalidade lusitana. No dizer de Armando Castro inexiste, também, uma leitura teórico-sistemática do processo histórico português e uma correcta compreensão do passado colectivo. Contudo, alguns trabalhos têm procurado anunciar algumas posições históricas a respeito da nacionalidade portuguesa.
Alexandre Herculano, afirma que o reino de Portugal decorreu de mudanças na região da Galiza e no arrebatamento aos sarracenos de domínios desprovidos de unidade racial, linguística e geográfica, a nação constitui uma realidade histórica sem elementos de coesão (económica, cultural e ideológica). Oliveira Martins, diz que Portugal é uma nação mas não uma nacionalidade, já que a sua formação não obedece às ordens da geografia, inexiste unidade racial e o alargamento dos domínios decorre da ação dos Barões ignorantes de teorias e sistemas. Jaime Cortesão, ressalta a influência dos factores geográficos na formação da nação portuguesa como estimulantes do comércio marítimo. António Sérgio, destaca o papel dos não espanhóis (comerciantes dos portos e cruzados) na luta pela autonomia da região portuguesa contra a incorporação política com Castela, onde o comércio do Norte da Europa se podia encontrar com o mediterrâneo. Damião Peres, vê a formação de Portugal ligada à acção dos príncipes, alto clero e barões. Joel Serrão, busca no desenvolvimento da geografia e na integração dos aspectos naturais e histórico-sociais os elementos esclarecedores da formação de Portugal
Ao retomarmos algumas destas posições, visualizamos nesta primeira fase da formação de Portugal, compreender as condições históricas que proporcionaram a participação dos viri religiosi na modulagem simultânea da nacionalidade e do estado, onde a organização política existente permitiu a duradoura luta contra os muçulmanos e contra as forças centrípetas de Leão e de Castela. Não está em definição, neste momento, o estado português como instrumento de domínio da classe privilegiada sobre as demais no processo de diferenciação social.
A cristianização da Península Ibérica foi conduzida pelos viri religiosi em pleno drama da reconquista. O forte sentimento religioso dominante na sociedade europeia actua no equacionamento das relações de poder, na medida em que se desenvolvem novas forças sociais e um antagonismo crescente. Portugal se destaca por uma rápida evolução, já que os grupos monásticos exercem importante papel na formação e definição do estado lusitano. Durante o período belicoso de Afonso VI, Portugal, originário da tenência do conde Henrique e fruto da acção humana, firmou a sua unidade político-económica ao conquistar a autonomia política juntamente com a Sé de Braga, que buscava a autonomia religiosa. A conversão dos não cristãos da Península Ibérica e a acção contra o infiel mouro competem aos viri religiosi que, ao estabelecerem seus quartéis de conversão, recebem doações e privilégios dos soberanos ocidentais.
Em meados do século X observa-se, no norte de Portugal, o reagrupamento das comunidades em torno de uma igreja e com certa hierarquia, onde ao lado de um chefe destaca-se a figura do padre. A comunidade organizada, agora centro de vida religiosa, em que os leigos definem-se por filii ecclesiae, tem nas actividades agrárias quotidianas as suas práticas solidárias e dotações de bens necessários à igreja e aos clérigos. Um aspecto interessante deste processo de reorganização comunitária é que ao lado da fixação dos leigos surge a vila dos mortos (cemitérios). Pierre David, trouxe um importante dado ao comentar o povoamento da região entre o Tejo e Minho, o culto de santos, anterior à invasão muçulmana». In Sidinei Galli, A Cruz, a Espada e a Sociedade Medieval Portuguesa, edição do Autor, História, volume 28, Universidade Aberta, Editora Arte e Ciência, Biblioteca da FCL, 1997.

Cortesia da UAberta/JDACT