quarta-feira, 3 de maio de 2017

A Intrusa. Júlia Lopes Almeida. «Os três jogadores eram de bem diferente aspecto. Em contraste ao todo severo do dono da casa, o deputado Armindo Teles alegrava a sala com os tons claros da sua roupa…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) E depois: ah! O Simão! sim... É desempenado. Veste-se bem. Não é águia, afirmou Teles; mas é o que se chama, uma mediocridade operosa, e é, sobretudo, um homem de bem! Isso em política não tem valor..., comentou o dono da casa. Mas que faz você aí, padre Assunção, remexendo nas estantes?! Estou a ver se encontro algum livro de Chartrier... Olha, o catálogo dos livros deve estar naquela gaveta, se acaso o Feliciano já o não deitou ao fogo! Eu já nem sei o que tenho... O que você deve procurar é os sermões do Padre Vieira!, disse malignamente Armindo Teles. Não preciso; sei-os de cor. Impinge-os como seus? Impingi-los-ia se os deputados fossem à igreja; mas você sabe, aos outros não..., tenho medo que percebam!
Riram-se todos. Teles retrucou: ainda o hei de ver na tribuna parlamentar, padre! Talvez. Os cilícios fazem os santos..., mas eu, humilde padre, encontraria quem se batesse por mim com o mesmo denodo com que você se bateu pelo...? Simão Cunha. Por esse senhor? Eu mesmo. Guarde as suas armas para melhor combate, amigo. Não tenho envergadura senão para um serviço, o divino. Cá tem você um livro precioso, Argemiro. Qual é? Vida de frei Bertolomeu dos Mártires. Adolfo Caldas comentou: soleníssimo! Que bela língua, reverendo!
Formosa! Frei Luiz de Sousa tinha a quem sair... Padre Assunção ficou de pé, junto à alta estante de jacarandá, folheando o livro, muito atento. O deputado recolheu as cartas dos parceiros: ganhava o jogo. A sabedoria dos provérbios está sendo comprometida..., declarou Argemiro. Você prova que a felicidade em amor é compatível com a do jogo! Adolfo Caldas acrescentou: leito, tribuna e mesa. Aí está um lema conveniente aos teus triunfos, Armindo!
Teles sorriu, respondendo sem disfarçar a vaidade: leito e tribuna..., vá; mas mesa, não sei porquê! Caldas, baralhando as cartas, concluiu: mesa, empreguei eu na expressão lata, falando como um dicionário. Referi-me à mesa do orçamento, à mesa do bacará e mesmo à do jantar. Não quero fazer-te a injustiça de supor que te alimentas a leite e a água de Vichy... Começas a ter pança; não te podes rir de mim; e jantaste hoje a meu lado, não te esqueças dessa circunstância; jantaste como um homem de boa consciência e magnífico estômago! Fiquei te considerando mais, depois que te vi comer. Argemiro observou, rindo: é o exercício da profissão...
Armindo Teles respondeu: vocês confundem-me como Araújo Braga..., que trouxe da pasta a prática da mastigação e leva mesmo a imprudência a ponto de dizer, como disse ontem à porta do Watson, à minha vista: eu hoje só vou roer subsídios e clientes. Esse tem, ao menos, o mérito da franqueza. A mim então só me aparecem causas péssimas, clientes já esfoladas, em osso. Se eu não tivesse alguns bens, iria esmolar na esquina!, declarou Argemiro.
O jogo chegara a um ponto que requeria a atenção absoluta dos jogadores. Ficaram largo tempo silenciosos, olhos fitos nas cartas, só entreabrindo a boca para a passagem das expressões obrigadas do póquer. Padre Assunção continuava a sua leitura, de pé, com o ombro encostado ao ângulo da estante. A batina muito escorrida desenhava-lhe o corpo esguio, descendo rente à moldura do móvel, confundindo-se com ele na sombra do aposento.
Os três jogadores eram de bem diferente aspecto. Em contraste ao todo severo do dono da casa, o deputado Armindo Teles alegrava a sala com os tons claros da sua roupa alvadia e da sua gravata escocesa picada por um rubi fulgurante. Representante do Paraná, que o tinha como um político hábil, presumia conhecer as coisas e os homens do Rio de Janeiro como os da sua terra, onde a família carpia saudades da sua pessoa airosa e bem tratada. Maleável, imprimia ao seu jornal de Curitiba as cambiantes políticas do seu partido e a vontade soberana do seu chefe, e desta arte equilibrava-se na invejada posição de representante da nação. Claro, louro, sem barba, que raspava escrupulosamente, ele aparentava menos idade do que a que tinha realmente. Falava com sossego, num agradável timbre de voz. Às vezes mesmo Caldas caçoava: na Câmara, quando o Armindo fala, não lhe escutam as palavras; ouvem-lhe a voz. C’est la voix d’or do Congresso!
Assim como a voz ele tinha macio o gesto, que parecia obedecer a um estudo, a que por certo não se aplicara nunca... As mãos, pequenas, mostravam os anéis de preço sem se desviarem muito do peito, sempre resguardado por linhos claros e fatos correctíssimos. Em frente dele, Adolfo Caldas, gordo e calvo, com um eterno charuto entalado entre os beiços carnudos, que o bigode castanho cobria, movia-se à vontade no seu veston de pano preto, com um bom ar de despretensiosa superioridade. Adolfo Caldas dizia-se rio-grandense, mas afirmavam alguns que ele era nascido em Montevidéu, de família brasileira. Vivia desde os vinte anos no Rio de Janeiro, sempre na boa roda de financeiros ilustres e ministros afamados, chegando-se para as árvores de substanciosos frutos e boa sombra». In Júlia Lopes Almeida, A Intrusa, 1905, Projecto Livro Livre, 219, 2014.

Cortesia de PLLivre/JDACT