quarta-feira, 17 de maio de 2017

A Trégua. Mario Benedetti. «Esse tipo de tarefa não me cansa, porque me permite pensar em outras coisas e até também sonhar»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Só me faltam seis meses e 28 dias para estar em condições de me aposentar. Deve fazer pelo menos cinco anos que mantenho este cômputo diário do meu saldo de trabalho. Na verdade, preciso tanto assim do ócio? Digo a mim mesmo que não, que não é do ócio que preciso, mas do direito a trabalhar no que eu quiser. Por exemplo? Jardinagem, quem sabe. É bom como descanso activo para os domingos, para contrabalançar a vida sedentária e também como defesa secreta contra a minha futura e garantida artrite. Mas temo não conseguir aguentar isso diariamente. Violão, outra hipótese. Acho que me agradaria. Mas começar a estudar solfejo aos 49 anos deve ser meio desolador. Escrever? Talvez não o fizesse mal; pelo menos, as pessoas costumam gostar das minhas cartas. E depois? Imagino uma notinha bibliográfica sobre as notáveis qualidades deste autor estreante que beira os 50, e a mera possibilidade me causa repugnância. Que eu me sinta, até hoje, ingénuo e imaturo (isto é, só com os defeitos da juventude e quase nenhuma das suas virtudes) não significa que tenha o direito de exibir essa ingenuidade e essa imaturidade.
Tive uma prima solteirona que, quando preparava uma sobremesa, insistia em mostrá-la a todos, com um sorriso melancólico e pueril que lhe havia ficado preso aos lábios desde a época em que se exibia para o namorado motociclista, o qual depois se matou numa de nossas tantas Curvas da Morte. Ela se vestia de maneira correcta, inteiramente de acordo com seus 53; nisso, e no resto, era discreta, equilibrada, mas aquele sorriso reclamava um acompanhamento de lábios frescos, de pele roçagante, de pernas torneadas, de 20 anos. Era um gesto patético, só isso, um gesto que não chegava nunca a parecer ridículo, porque naquele rosto havia também bondade. Quantas palavras, só para dizer que não quero parecer patético. Para render passavelmente no escritório, preciso obrigar-me a não pensar que o ócio está relativamente próximo. Do contrário, meus dedos se crispam e a letra redonda com a qual devo escrever os itens me sai quebrada e deselegante. A letra redonda é um dos meus maiores prestígios como empregado. Além disso, devo confessar que me dá prazer o traçado de algumas letras como o M maiúsculo ou o b minúsculo, nas quais me permiti algumas inovações. O que eu menos odeio é a parte mecânica, rotineira, do meu trabalho: repassar um lançamento que já redigi milhares de vezes, efectuar um balanço de saldos e constatar que tudo está em ordem, que não há diferenças a buscar.
Esse tipo de tarefa não me cansa, porque me permite pensar em outras coisas e até (por que não dizer a mim mesmo?) também sonhar. É como se eu me dividisse em dois entes díspares, contraditórios, independentes, um que sabe de cor o seu trabalho, que domina ao máximo as variantes e os meandros dele, que está sempre seguro de onde pisa, e outro sonhador e febril, frustradamente apaixonado, um sujeito triste que, no entanto, teve, tem e terá vocação para a alegria, um distraído a quem não importa por onde corre a pena nem que coisas escreve a tinta azul que em oito meses ficará negra.
No meu trabalho, o insuportável não é a rotina; é o problema novo, o pedido repentino dessa directoria fantasmal que se esconde por trás de actas, disposições e gratificações de fim de ano, a urgência com que se reclama um informe ou um balancete analítico ou uma previsão de recursos. Então, sim, como se trata de algo mais do que rotina, as minhas duas metades devem trabalhar para a mesma coisa, eu já não posso pensar no que quiser, e a fadiga instala-se nas minhas costas e na nuca, como um emplastro poroso. Que me importa o lucro provável do item Pernos de Pistão no segundo semestre do penúltimo exercício? Que me importa o modo mais prático de conseguir a redução das Despesas Gerais? Hoje foi um dia feliz; só rotina. Nenhum dos meus filhos se parece comigo. Em primeiro lugar, todos têm mais energias do que eu, parecem sempre mais decididos, não estão acostumados a duvidar. Esteban é o mais arredio. Ainda não sei a quem se dirige o seu ressentimento, mas o certo é que ele parece um ressentido. Creio que tem respeito por mim, mas nunca se sabe. Jaime, talvez seja o meu preferido, embora quase nunca possamos nos entender. Ele me parece sensível, me parece inteligente, mas não me parece fundamentalmente honesto. É evidente que existe uma barreira entre nós dois. Às vezes acho que ele me odeia, às vezes que me admira. Blanca, pelo menos, tem algo em comum comigo: também é uma triste com vocação de alegre. Quanto ao resto, é por demais ciosa de sua vida própria, impermutável, para compartilhar comigo os seus mais árduos problemas. É quem fica mais tempo em casa, e talvez se sinta um pouco escrava da nossa desordem, das nossas dietas, da nossa roupa suja. As suas relações com os irmãos às vezes chegam à beira da histeria, mas ela sabe dominar-se e, mais ainda, sabe dominá-los». In Mario Bennedetti, A Trégua, Cavalo de Ferro, 2015, ISBN 978-989-623-048-7.

Cortesia de ECdeFerro/JDACT