sexta-feira, 19 de maio de 2017

Nómada. Ayaan Hirsi Ali. «Alguns deles com certeza achariam que eu merecia a morte, e para muitos mais a minha simples presença seria uma profanação do leito de morte do meu pai»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Deixei-o falar. Não fiz falsas promessas de conversão. Se as tivesse feito, talvez desse mais paz a ele, mas não pude fazê-lo, não pude mentir a respeito disso. Consegui dizer gentilmente que, apesar de não concordar mais com o islão, eu ainda lia o Alcorão. Não acrescentei que a cada releitura eu me tornava mais crítica em relação às suas mensagens. Ele irrompeu numa série de súplicas: que Alá a proteja, que Ele a traga de volta para o rumo correcto, que Ele a leve ao Paraíso no além, que Alá a abençoe e preserve sua saúde. Ao fim de cada súplica, respondi com a fórmula exigida: amin, que assim seja.
Depois de algum tempo disse a meu pai de que precisava tomar um avião. Ele não perguntou para onde nem por quê; percebi que os detalhes dos assuntos terrenos tinham pouca importância para ele agora. Então desliguei, deixando entre nós muitas outras coisas por dizer, e quase perdi o avião que me levaria ao Brasil para uma conferência sobre multiculturalismo. No fim de Junho, após a conferência no Brasil, eu deveria ir até à Austrália para participar de um colóquio sobre o Iluminismo. Planeei visitar o meu pai no fim do verão. Mas em meados de Agosto, quando estava voltando da Austrália, recebi outro telefonema de Marco durante uma paragem em Los Angeles. Meu pai estava em coma. Telefonei novamente para a minha prima, Magool, e ela me deu o número de telemóvel da minha meia-irmã, Sahra. Quando vira a filha mais nova do meu pai pela última vez, em 1992, Sahra estava com oito ou nove anos, uma criança franzina e energética. Conhecemo-nos quando parei na Etiópia durante a viagem da minha casa, no Quénia, até à Alemanha.
De lá, sob as ordens do meu pai, eu deveria ir ao Canadá para me unir a um homem que mal conhecia, um primo distante que se havia tornado meu marido. Naquela época, Sahra morava em Adis Abeba com a mãe, que, como a minha própria mãe, ainda estava casada com meu pai apesar da sua ausência. Brinquei com esta meia-irmã durante toda a tarde, esforçando-me para lembrar o amárico da minha infância, o único idioma falado por ela na época e a língua que eu mesma falava quando tinha essa idade e ainda morava com meu pai.
Agora, no Verão de 2008, Sahra tinha 24 anos. Estava casada e tinha uma filha de quatro meses. Morava com a mãe, a terceira esposa do meu pai. Não contei a Sahra que pretendia visitar o meu pai no hospital. É horrível escrever algo deste tipo, mas a verdade é que eu não sabia se poderia confiar nela e dividir essa informação. Acredito que os membros mais próximos da minha família não desejam realmente matar-me, mas a verdade é que eu os envergonhei e magoei; eles têm de suportar a indignação causada pelas minhas declarações públicas, e sem dúvida alguns membros do meu clã querem matar-me por causa disso.
Mas Sahra adiantou-se e sugeriu que se eu quisesse visitar abeh seria melhor evitar o horário oficial de visitas, quando multidões de somalis procurariam o meu pai no Royal London Hospital em busca de uma bênção dele que melhorasse as suas chances de chegar ao Paraíso. Para muitos, abeh era um símbolo da luta contra o regime militar do presidente Siad Barre; ele era um homem que dedicou a maior parte de sua vida adulta à tentativa de derrubar aquele regime. No East End de Londres, as coisas eram como na Somália: muitas esposas, muitos filhos e netos, anciãos do clã e do subclã e dos subclãs irmãos, muitos e muitos parentes procuravam meu pai para manifestar o seu respeito por ele. Para muitos deles eu não seria bem-vinda ao lado da cama do meu pai por ser uma descrente, uma infiel, uma ateia declarada, uma fugitiva suja e, ainda pior, uma traidora do clã e da fé.
Alguns deles com certeza achariam que eu merecia a morte, e para muitos mais a minha simples presença seria uma profanação do leito de morte do meu pai, podendo até custar a ele o seu lugar no além. Entretanto, não senti em Sahra tamanha rejeição. Ela foi doce e silenciosa, um pouco como se participasse de uma conspiração, como se ao conversar com ela pelo telefone eu a tivesse envolvido em algo clandestino e perigoso». In Ayaan Hirsi Ali, Nomad, From Islam to America, Nómade, tradução de Augusto Calil, Companhia das Letras, 2010, ISBN 978-858-086-374-1 e / ou In Ayaan Hirsi Ali, Nómada, Galaxia Gutenberg, 2011, ISBN 978-848-109-928-7.

Cortesia da CdasLetras/GGutenberg/JDACT