sábado, 13 de maio de 2017

O Enigma de Compostela. AJ Barros. «Os raios do sol ficaram quentes e as nuvens brancas não tinham mais a leveza de antes»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Gostava do silêncio e, mesmo quando ainda tinha sua família e todos viviam no mesmo apartamento, procurava um cantinho da casa, longe das discussões e dos ruídos de liquidificador, máquina de lavar pratos e secadores de cabelo, embora não conseguisse livrar-se do barulho da rua e da campainha do telefone. O Caminho era uma nova oportunidade para repor o seu toque de silêncio. Estava assim pensando quando reparou na mulher que tinha chegado junto com ele ao alto do monte. Ela bebeu água sofregamente e depois abriu uma embalagem de onde tirou o lanche. Estava cansada, mas conseguira acompanhá-lo na subida. Seguira-o de perto, desde os pés dos Pirenéus, e agora estava ali, sentada, com o olhar para os montes que acabara de subir, como se esperasse alguém com quem dividir o silêncio e a beleza curvilínea das montanhas. Toda aquela paisagem lhe entrava pelos olhos e ele sentia também a beleza da alma, como se os sentimentos fluíssem agora para uma paisagem interna, que os olhos não veêm e o espelho não mostra.
Uma viatura da polícia apareceu ao longe, subindo as curvas da estrada e dando a sensação de um pequeno barco jogado, ora para um lado ora para o outro, pelas ondas de um mar encrespado. O veículo vinha com a sirene ligada, destoando da calma paisagem, e parou perto da mulher. Um polícia ficou ao volante e outro, de uniforme azul, bonito e impecável, com algumas divisas nos ombros, desceu e dirigiu-se a ela. Senhora Marina, desculpe interromper a sua peregrinação, mas vim pedir-lhe para me acompanhar de volta. Ela levou as duas mãos ao rosto, tomada pela angústia. Aconteceu alguma coisa, sargento? O sargento notou a presença de Maurício, mas respondeu: houve um acidente e o burrico caiu no precipício. Um peregrino avisou pelo telemóvel de alguma coisa suspeita e achamos melhor ir até lá.
Precipício? O burrico caiu num precipício? Oh! Meu Deus!, exclamou ela, com voz desesperada. Decididamente, é difícil ser diplomático numa emergência dessas. Acho melhor voltar comigo. Não vou mentir. Seu marido e a menina morreram. A mulher empalideceu, pareceu meio estonteada, e desmaiou. Os polícias colocaram-na viatura e desceram o monte de volta. Porque teria a paisagem mudado, de repente? Os raios do sol ficaram quentes e as nuvens brancas não tinham mais a leveza de antes. Em vez de ovelhas pastando silenciosas sobre o gramado verde dos montes, ele via agora uma criança morta no fundo de um precipício.
Saíra da Porta de Espanha, em Saint-Jean-Pied-de-Port, no sul da França, que os peregrinos já cruzavam desde a Idade Média, às sete horas da manhã, e já passava das onze. O primeiro trecho do Caminho, que vai até Roncesvalles, no norte da Espanha, estende-se por uma distância de 27 quilómetros e é considerado o mais difícil dos 800 quilómetros do percurso. Nessa etapa, o peregrino vence um aclive de mais de 20 quilómetros de montes cheios de curvas, quando então começa sua descida até Roncesvalles. Ele já andara uns 15 quilómetros e agora pensava no espanhol que encontrara na saída de Saint Jean Pied de Port. O homem tomara a iniciativa de cumprimentá-lo: buenos dias. Brasileno, no? Sim, brasileiro, respondera em português. Vai fazer o Caminho? No, ahora. Me voy con mi hija a Roncesvalles en un borrico. Ella tiene solamente 12 anos, pero mi mujer ya fue adelante». In AJ Barros, O Enigma de Compostela, Luz da Serra, Geração Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-127-3.

Cortesia de GEditorial/JDACT