domingo, 18 de junho de 2017

O Fardo da Nobreza Donna Leon. «Olhou em volta, mas não viu nada além das três velhas árvores que tinham crescido em redor do poço em ruínas»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) As notícias nunca se propagam de forma tão rápida numa cidade pequena quando dizem respeito a mortes ou acidentes, de modo que a história de que ossos humanos tinham sido encontrados no jardim da velha casa dos Orsez já se havia espalhado pelo vilarejo de Col di Cugnan antes da hora do almoço. Somente a notícia da morte do filho do prefeito num acidente de automóvel perto da fábrica de cimento, havia sete anos, tinha-se espalhado tão rapidamente; mesmo a história sobre Graziella Rovere e o mecânico só se tornara do conhecimento de todos após dois dias. Naquela noite, porém, os habitantes do vilarejo, todos os setenta e quatro, desligaram os seus televisores durante o jantar ou conversaram sem ligar para o que neles passava, tentando especular sobre o que teria acontecido e, o que era mais interessante, sobre quem poderia ser.
A apresentadora de casaquinho de pele da RAI 3, a loira que a cada noite usava óculos diferentes, foi ignorada enquanto informava sobre as últimas atrocidades na antiga Jugoslávia, e ninguém deu a mínima para a prisão do ex-ministro do Interior sob acusações de corrupção. Notícias assim já faziam parte da rotina; mas um crânio numa vala nos fundos da residência de um estrangeiro, isso sim era notícia. Até a hora de dormir, já se dizia que o crânio tinha sido esmigalhado pelo golpe de um machado ou de uma bala e que apresentava sinais de terem tentado dissolvê-lo em ácido. A polícia havia identificado, disso os habitantes tinham certeza, os ossos como sendo de uma mulher grávida, de um rapazinho e do marido de Luigina Menegaz, que havia partido para Roma doze anos antes e do qual nunca mais se ouvira falar desde então. Nessa noite, os moradores de Col di Cugnan trancaram as suas portas, e os que tinham perdido as suas chaves anos antes e nunca se haviam dado ao trabalho de procurá-las tiveram um sono mais agitado que os outros.
Na manhã seguinte, às oito horas, duas viaturas dos carabinieri chegaram à casa do dr. Litfin, passando por cima da relva recém-plantada para estacionar uma em cada lado dos dois longos sulcos arados no dia anterior. Somente depois de uma hora chegou o carro do centro da província de Belluno que trazia o medico legal daquela cidade. Ele não ouvira nenhum dos rumores sobre a identidade ou a causa da morte da pessoa cujos ossos jaziam sobre o terreno, dando início assim aos procedimentos que pareciam prioritários: colocar os seus dois assistentes para revolver a terra e descobrir o resto. Enquanto esse longo processo avançava, as duas viaturas dos carabinieri revezavam-se atravessando o agora destruído relvado e dirigindo-se até ao vilarejo, onde os seis policiais tomaram o seu café num café e começaram a perguntar aos habitantes se alguém tinha desaparecido. O facto de os ossos aparentemente terem ficado enterrados por muitos anos não os demoveu de sua decisão de indagar sobre eventos recentes, de modo que as suas investigações não levaram a nada.
No terreno, os dois assistentes do dr. Bortot tinham montado uma peneira bem afunilada e lentamente iam despejando baldes de terra através dela, abaixando-se de quando em quando para apanhar um osso pequeno ou qualquer coisa que parecesse ser um. À medida que os iam recolhendo, mostravam os ossos ao seu superior, que se tinha instalado na borda da vala, com as mãos para trás. Um grande plástico preto se estendia a seus pés, e à medida que os ossos iam sendo apresentados a ele, orientava os seus assistentes sobre como dispô-los; assim, juntos, iam lentamente montando o macabro quebra-cabeça. Uma vez ou outra, pedia a um dos homens que lhe passasse um osso, que avaliava por um momento antes de se inclinar para posicioná-lo em algum lugar do plástico. Em duas ocasiões mudou de ideia; numa delas ajoelhou-se para mover um osso da direita para a esquerda, noutra, com um suspiro abafado, deslocou outro osso da base do metatarso para a extremidade do que antes fora um pulso.
O dr. Litfin chegou às dez, tendo sido informado na noite anterior sobre a descoberta no seu jardim e então conduziu toda a noite vindo de Munique. Estacionou na frente da casa e saiu com dificuldade do carro. Entre ele e a casa viu as numerosas e profundas trilhas de pneus feitas sobre o novo relvado que ele havia cultivado com puro deleite três semanas antes. E logo viu os três homens no terreno mais adiante, quase tão distantes quanto os canteiros de mudas de framboeseiras que ele trouxera da Alemanha e plantara de imediato. Começou a cruzar o relvadodo destruído, mas de repente parou sob uma ordem gritada de algum ponto à sua direita. Olhou em volta, mas não viu nada além das três velhas árvores que tinham crescido em redor do poço em ruínas. Não tendo visto ninguém, retomou o andar em direcção aos três homens no terreno. Não deu mais que alguns passos antes que dois homens trajando os ameaçadores uniformes negros dos carabinieri saíssem debaixo da macieira mais próxima apontando metralhadoras na sua direcção. O dr. Litfin sobrevivera à ocupação de Berlim pelos russos e, embora isso tivesse sido mais de cinquenta anos antes, o seu corpo não esquecera a visão de homens armados em uniforme. Instintivamente, ergueu as duas mãos sobre a cabeça e ficou imóvel como uma pedra». In Donna Leon, O Fardo da Nobreza, 1997, Companhia das Letras, 2012, ISBN 978-853-592-056-7.

Cortesia da CdasLetras/JDACT