quinta-feira, 1 de junho de 2017

O Pecado e a Honra. Maria João Câmara. «E eram histórias que, na maioria das vezes, haviam sido encovadas, como um morto se enterra no seu sepulcro»

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«O infante Manuel assistia à missa no convento de Odivelas. Sentado num cadeirão de espaldas, mesmo em frente do altar, teimava em mexer o pé direito de encontro ao pé esquerdo. O bico da bota direita batia, pois, compassadamente, no da bota esquerda. Deixara de ouvir o ofício divino, que Deus lhe perdoasse!, pois sentia grande dor nas costas. Havia abusado. A montaria, caça sem tréguas e sem descanso dada a javalis e a cerdos, abatia-se-lhe sobre o corpo e pesava-lhe nos ombros como se neles carregasse um enorme fardo. Olhou para os seus companheiros pelo canto do olho. Ali estavam sete fidalgos das mais distintas linhagens doreino, impassíveis, como se tivessem acabado de dormir uma longa noite. Apesar das dores, o infante Manuel não se mexeu. Sabia que todos os seus gestos eram seguidos com grande atenção.
Atrás dele, os fiéis esforçavam-se por responder aos ritos enquanto o sacerdote, virado para o altar, entoava monocórdico: misereàtur nostri omnipotens Deus et, dimissis peccàtis nostris, perdùcat nos ad vitam aetèrnam. Ouviu-se um Ámen distraído. E logo depois: kyrie eléison; Kyrie eléison; Christe eléison Christe eléison. Era evidente o fascínio que os membros do grupo provocavam entre os populares, porque eram raros os dias em que podiam ver tão ricos e coloridos trajes. Miravam-nos com curiosidade, mas discretamente, ansiando talvez por uma palavra, um sorriso, uma esmola destes senhores que, bem se via, eram nobres pelo trajar, pelo falar pela pose e pela quantidade de cavalos, mulas e criados que os acompanhavam. Ainda no adro, as crianças atreveram-se a chegar mais perto deles, levando por vezes bravos safanões por tal atrevimento. Rapazes novos!, diriam os paroquianos habituais, nos seus trajes de ir ver a Deus, de camisas brancas e fatos de cotim castanhos, os chapéus de feltro cambados nas mãos, a testa branca imaculada e o restante do rosto tisnado pelo sol. Pouca vergonha, é o que é!, diriam as mulheres de lenço atado à cabeça, as saias rodadas e os pés descalços ou metidos em chinelos rasos e rotos, puxando a si os filhos rechaçados, sabendo bem do que falavam. Mas agora, no interior do templo, também elas se distraíam com as capas e os chapéus e as gorras de tecidos finos e cores garridas.
E a ida à missa ao convento de Odivelas não permaneceria inocente, como não haviam permanecido inocentes as idas a Caneças ou a Carnide, meses antes, uma vez que, mal se entoara o Kyrie, e já o infante Manuel se havia fixado numa das noviças que assistia às cerimónias num pequeno varandim, adiante de si, à mão esquerda, e nela se deteve durante a maior parte do tempo que demorou o longo ofício. Era como se uma forte corrente de ar o impelisse para aquele rosto redondo, muito fresco e bonito, os olhos invulgarmente azuis, de um azul profundo, a boca pequena e fina, o cabelo escondido pelo véu de noviça, em hábito de coro castanho e capa branca. À medida que decorria a missa, o infante alternou o seu estado entre o semienfeitiçado e o devoto, cumprindo os gestos rituais, ora ajoelhando, ora erguendo-se, ora rezando, ora fingindo meditar, ora não podendo mesmo concentrar-se, já porque estava enfeitiçado, já porque lhe doíam as malditas costas... Não se pense que não era homem de fé. Era. Mas, por vezes, no seu interior as coisas do mundo sobrepunham-se às do Alto e, as mais das vezes, depois desses momentos de desvio, acabava sempre por confessar contritamente o seu arrependimento.
Quanto à noviça, de seu nome Isabel, encolhia-se no seu lugar, embora se regozijasse perante o interesse do estranho. Sentia as frontes a arder porque não havia maneira de o fidalgo desviar o olhar do seu rosto. Era noviça, a sua vocação não estava determinada, o seu estado podia não ser definitivo. Mas ela sabia de histórias de traições e pecado que corriam por entre as paredes de muitos conventos, tendo algumas delas como resultado alguns filhos de Deus para criar. E eram histórias que, na maioria das vezes, haviam sido encovadas, como um morto se enterra no seu sepulcro, mas que se sabiam por criadas ordinárias ou por velhas freiras mentecaptas que, nos seus delírios de demência, acabavam por revelar das suas vidas o que até então fora oculto com desvelo. E eram histórias de amores e de fugas, de prisões e violências, histórias passadas entre aqueles muros». In Maria João Câmara, O Pecado e a Honra, Oficina do Livro, Leya, 2012, ISBN 978-989-555-830-8.

Cortesia de OdoLivro/JDACT