quinta-feira, 1 de junho de 2017

O Pecado e a Honra. Maria João Câmara. «Era dura a vida no convento, mas era melhor para qualquer mulher morrer ali do que enrolada em mil trapos viscosos»  

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«(…) Delas, Isabel recordava-se agora, que via como o diabo a tentava naquele homem! Porque aquele que nela fixava os olhos tinha um brilho especial. O cabelo de um castanho acobreado cortado a direito pela altura do ombro, uma franja que deixava ver os olhos negros mas grandes e atentos, o queixo quadrado, o nariz pequeno e um pouco curvado, o corpo forte e jovem, era um homem que emanava um frémito a que a noviça não conseguia ficar indiferente. Que podia ela fazer se o garboso nobre não desviava o olhar? Tentava rezar com fervor, pedia à Virgem e aos santos que viessem em seu auxílio, mas como poderia ela afastar o ardor, a agitação e a veemência que sentia?
No final do ofício, e por ser domingo, a abadessa convidou o grupo de ilustres para a mesa conventual na porfia de que, com o estômago cheio e satisfeito, viessem as doações, que bem precisava delas pois entrariam umas poucas noviças pobres e sem dote no mês seguinte. A abadessa era uma mulher prática e desejava recolher tantas raparigas quantas pudesse, uma vez que, na pobreza das suas vidas, nos campos ou na cidade, muitas perder-se-iam sem retorno. Ali, pelo menos, teriam o alimento espiritual que as faria fortes e destemidas, teriam a instrução mínima, um tecto, comida na mesa e assistência na velhice. Era dura a vida no convento, mas era melhor para qualquer mulher morrer ali do que enrolada em mil trapos viscosos, coberta de piolhos e de pulgas, devorada pelas dores e pelas chagas, deitada na valeta de um descaminho...
Para toda a sua obra e actividade, a abadessa necessitava de rendimentos, doações, benesses e da preferência dos poderosos deste mundo, os quais compensavam com largas somas as guerras que travavam e as injustiças que praticavam, transformando-as em bens espirituais e atenuando assim as penas dos seus pecados. E eis que o infante Manuel se via atravessando o claustro, pelo único passilho permitido a leigos e entrando depois numa sala comprida, abobadada, caiada de branco e onde uma grande mesa, posta com uma toalha imaculada, parecia esperar desde sempre a chegada de convidados. Sentados que foram os nobres no banco corrido, quatro de um lado e três do outro (que a abadessa se sentou à cabeceira), da grande cozinha do mosteiro começaram a chegar alguns pratos de rigor: caldo de carne, galinha de cabidela e feijão branco, sem grande sabor, viandas de leite e chourições postos em grandes fatias de pão. Os doces, esses sim, eram divinais: a marmelada branca e o toucinho-do-céu converteram o jantar num ganho de paladar e de delícia terrena.
Acrescentava-se a este o sabor de algo ainda não provado, algo que se desenhava no horizonte de Manuel: enquanto levava a colher à boca, olhava para Isabel e saboreava cada pedacinho de toucinho-do-céu com duplo gozo. O doce amendoado tomou mesmo foros de êxtase antecipado. Entretanto, a lisonja da abadessa e de várias freiras mais velhas, que intentavam servi-lo a ele, Manuel, desveladamente, fazia-o sorrir, e sempre que o fazia mirava Isabel, acompanhando com o olhar todos os gestos do seu serviço. Sorria quando ela passava com as escudelas e aviava a água ou o vinho à sua frente, podendo sentir o seu cheiro fresco enquanto ela se debruçava sobre si e o atendia, trémula, vertendo o precioso líquido de um enorme jarro de boa prata que saía à mesa nas melhores ocasiões. Sorria Manuel». In Maria João Câmara, O Pecado e a Honra, Oficina do Livro, Leya, 2012, ISBN 978-989-555-830-8.

Cortesia de OdoLivro/JDACT